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Campos minados na Ucrânia "podem prolongar conflito por décadas"

Desde o início da guerra na Ucrânia, minas terrestres foram espalhadas na maior parte do país durante combates e ocupações. Um flagelo que levará décadas para ser superado, de acordo com ONGs especializadas. Atuando nos locais afetados pela presença dos artefatos, essas organizações já trabalham para proteger certas áreas e conscientizar a população sobre os riscos.

Funcionários do Serviço de Emergência da Ucrânia apresentam à mídia o primeiro veículo especializado em remoção de minas Armtrac 400 do país, adquirido pela plataforma de captação de recursos United24. Próximo a Kharkiv, em 27 de outubro de 2022.
Funcionários do Serviço de Emergência da Ucrânia apresentam à mídia o primeiro veículo especializado em remoção de minas Armtrac 400 do país, adquirido pela plataforma de captação de recursos United24. Próximo a Kharkiv, em 27 de outubro de 2022. AFP - SERGEY BOBOK
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Cyrielle Cabot, da France 24

Em 12 de setembro, enquanto as forças russas se retiravam da cidade de Izium, no leste da Ucrânia, Lyudmila Ivanenka correu para assistir à partida das tropas. Um momento de festa para esta ucraniana de 69 anos, depois de passar diversas semanas sob o jugo do inimigo. Mas sua alegria duraria pouco: voltando para casa, ela pisaria em uma das minas deixadas pelos invasores. Lyudmila perdeu o pé direito devido à explosão, além de ter sofrido ferimentos graves nos dois braços.

Testemunhos como esse, veiculados pelo jornal americano The Washington Post, chegam às centenas desde o início da invasão russa na Ucrânia, em 24 de fevereiro de 2022. Em meio a combates, retiradas e ocupações, milhares de minas e munições não detonadas foram espalhadas pelo território, ameaçando constantemente a população.

“Mesmo antes da ofensiva russa lançada em fevereiro, a Ucrânia já era um dos países mais afetados pelo flagelo das minas terrestres”, lembra Hector Guerra, diretor da Campanha Internacional de Proibição de Minas Terrestres (ICBL, na sigla em inglês). "A guerra na Ucrânia não começou em 2022, mas em 2014, no Donbass. E por oito anos, muitas minas foram implantadas lá", ele acrescenta.

De acordo com estimativas das autoridades ucranianas e de diversas ONGs, incluindo a ICBL e a Human Rights Watch (HRW), entre 250 mil e 300 mil km² do território ucraniano, ou seja, dois terços do país, estariam minados atualmente. "Um número difícil de determinar com precisão", admite Guerra, enquanto o conflito ainda está em curso e as informações de certas áreas permanecem fragmentadas, "mas que fariam da Ucrânia o maior campo minado do mundo".

Rússia teria maior estoque mundial de minas

O Tratado de Ottawa, lançado em 1997 e assinado por mais de 160 países - incluindo a França e a Ucrânia - obriga os Estados a "nunca, em nenhuma circunstância", "usar, produzir, comprar ou armazenar minas". Mas a Rússia, a China e os Estados Unidos sempre se recusaram a ratificar o documento.

A ICBL estima que Moscou tem 26,5 milhões de minas - o maior estoque disponível no mundo. "A Ucrânia, por sua vez, também não respeita integralmente seus compromissos, porque não destruiu todos os seus estoques, conforme previsto no tratado", denuncia Hector Guerra.

Desde o início do conflito, as forças russas já utilizaram sete tipos de minas explosivas, todas de fabricação soviética, revelou uma investigação realizada pela HWR em junho de 2022. Entre os artefatos encontrados estão as minas POM-3, que são implantadas por foguete e que, quando explodem, podem ser fatais em um raio de aproximadamente 16 metros.

No início de janeiro, a ONG acusou as forças ucranianas de também terem usado minas terrestres em seu próprio território para libertar a cidade de Izium. "As forças russas usaram minas repetidamente e cometeram atrocidades em todo o país, mas isso não justifica o uso dessas armas proibidas pela Ucrânia", alegou a organização.

"Não se aproxime! Não toque! Não entre em pânico!"

Em todo o país, multiplicam-se os alertas para que a população se mantenha constantemente vigilante. As estradas estão repletas de placas improvisadas com a imagem de uma caveira e de ossos cruzados sobre um fundo vermelho, indicando as áreas a serem evitadas. Porque os civis são as maiores vítimas desses dispositivos.

De acordo com o relatório Landmine Monitor 2022, das 5.544 pessoas atingidas por esse tipo de artefato explosivo em 2021 em todo o mundo, 4,2 mil eram civis. "E metade delas eram crianças", destaca Heitor Guerra. "As minas não distinguem civis e soldados. Sua utilização vai totalmente contra as regras internacionais de guerra que exigem dos beligerantes que façam o máximo para poupar os civis", denuncia o diretor da ICBL.

O governo ucraniano, por sua vez, lançou, em meados de janeiro, uma vasta campanha de sensibilização nas redes sociais. Em um vídeo, um pedestre caminha por uma floresta quando percebe uma mina no chão. Em vez de se aproximar, ele se afasta e liga para o número dedicado à desminagem: 101. "Não se aproxime! Não toque! Não entre em pânico!", resume a legenda.

“Sem contar que a essas minas são adicionados outros explosivos, principalmente bombas de fragmentação – reservatórios cheios de minibombas explosivas –, mas também todos os dispositivos defeituosos que não explodirão diretamente em contato com o solo”, explica Anne Héry, diretora de advocacia na Handicap International. E ela insiste: “Todos podem explodir a qualquer momento e representam uma ameaça grave e constante para a população”.

Cinco vezes mais vítimas em 2022

Ao todo, a Ucrânia já contabilizou 277 vítimas civis atingidas por minas ou outros explosivos entre janeiro e setembro de 2022, cinco vezes mais que no ano anterior, de acordo com o Landmine Monitor. “Um número provavelmente mais uma vez subestimado, tornando impossível o recenseamento das vítimas em certos locais, em especial aqueles ocupados pelos russos”, alerta Hector Guerra.

"Ensinar à população os comportamentos corretos a adotar é tão importante quanto identificar as áreas contaminadas e efetuar as operações de desminagem", explica Tymur Pistriuha, responsável da Associação de Desminadores Ucranianos. Desde 2018, esta ONG trabalha para mapear as zonas perigosas do país, sensibilizar a população para os riscos, mas também para desarmar e remover as minas do território.

Desde o início do conflito, a equipe, composta por cerca de 40 pessoas, concentra suas operações no leste da Ucrânia, nos territórios recentemente libertados após semanas de ocupação russa. A rotina do grupo é marcada por reuniões com as vítimas e suas famílias e pelo som de detectores de metais para listar as minas a serem desativadas nas cidades e arredores.

A tarefa, no entanto, enfrenta muitos obstáculos logísticos. "É um trabalho de titãs, tudo deve ser vasculhado, porque as minas podem ser encontradas em todos os lugares – nos campos, nas estradas, nos prédios, até nos cemitérios", explica Tymur Pistriuha. “Falta pessoal qualificado e equipamentos, inclusive detectores de metais”, ele lamenta.

“No momento, conseguimos limpar 22 hectares de terras agrícolas ao redor de Boutcha. E acabamos de receber o consentimento das autoridades para restabelecer o acesso aos agricultores”, ele conta.

Como um câncer

Por precaução, o governo proíbe o acesso a muitas áreas, em particular áreas florestais e agrícolas. Mas, nas cidades, onde a vida tenta retomar seu curso, a ameaça permanece constante. “O uso intensivo de minas em áreas urbanas é de fato uma das especificidades deste conflito. E isso torna as operações de desminagem ainda mais complexas”, explica Anne Héry, da Handicap International, que trabalha na Ucrânia desde 2014.

“As forças russas deixaram cidades em ruínas, com prédios com armadilhas do chão ao teto. O risco é realmente tridimensional. Então, proteger os lugares é particularmente perigoso. Em terrenos agrícolas, por exemplo, as coisas são mais simples porque os explosivos estão quase sempre no chão”, explica Héry.

Um desminador do Serviço de Emergência da Ucrânia caminha perto de Kharkiv, em 27 de outubro de 2022.
Um desminador do Serviço de Emergência da Ucrânia caminha perto de Kharkiv, em 27 de outubro de 2022. AFP - SERGEY BOBOK

"Enquanto essas minas estiverem lá, a população não poderá voltar a ter uma vida normal", lamenta Tymur Pistriuha, dos Desminadores Ucranianos. "Esses explosivos prolongam a guerra e o terror mesmo depois que o inimigo vai embora. É como um câncer: eles espalham seus males por toda parte."

Além dos riscos para a vida humana, as minas e outros artefatos explosivos também trazem graves consequências na vida econômica, no acesso à saúde e educação e até mesmo no meio ambiente.

“Dois terços do território ucraniano são campos agrícolas. Hoje, parte deles está abandonada porque o risco é muito grande”, denuncia Tymur Pistriuha. “É um desastre não somente para os agricultores que não podem mais trabalhar, mas também para algumas aldeias que vivem apenas de suas colheitas”.

Impacto psicológico

Em meados de dezembro, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, afirmou que o Mar Negro e o Mar de Azov também estariam infestados de minas flutuantes que ceifaram a vida de "centenas de milhares de criaturas vivas". Um "ecocídio" e um grave ataque à biodiversidade, ele denunciou.

"Além disso, há todo o impacto psicológico", continua Tymur Pistriuha. “Por exemplo, uma amiga minha se recusa categoricamente a ir para a floresta perto de sua casa porque tem medo de haver minas. No entanto, os russos nunca estiveram presentes onde ela mora e o acesso é gratuito”, ele relata.

“A população vive com medo constante de pisar em uma mina. Isso os leva a mudar seus hábitos, a restringir seus movimentos”, confirma Anne Héry. “Alguns já não se atrevem a mandar os filhos para a escola ou para as unidades de saúde por medo de tomar determinados caminhos. É uma espécie de ansiedade permanente”.

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