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Reportagem

Com dois candidatos, extrema direita pode ter um terço dos votos na eleição presidencial francesa

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O espectro político francês sempre teve espaço para a extrema direita. Mas na eleição presidencial de 2022, pela primeira vez, dois candidatos têm a chance de vencer o primeiro turno e enfrentar o presidente Emmanuel Macron em 24 de abril. Depois de Marine Le Pen, líder do partido Reunião Nacional, a fulminante ascensão de Éric Zemmour ilustra o peso do eleitorado de extrema direita no país, mas o racha interno ameaça a vaga no segundo turno.

Marine Le Pen, do Reunião Nacional, e Éric Zemmour, do Reconquista!, concorrem pela vaga no segundo turno das eleições presidenciais francesas, contra o presidente Emmanuel Macron. (21/02/2021)
Marine Le Pen, do Reunião Nacional, e Éric Zemmour, do Reconquista!, concorrem pela vaga no segundo turno das eleições presidenciais francesas, contra o presidente Emmanuel Macron. (21/02/2021) AFP - ERIC PIERMONT
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Lúcia Müzell, enviada especial a Béziers e Perpignan (sul da França)

O ex-jornalista Zemmour passou anos expondo opiniões polêmicas em programas de televisão franceses, como a teoria da “grande substituição” da população branca e cristã europeia por muçulmanos do norte africano. Ao anunciar sua candidatura à presidência e a criação do novo partido Reconquista!, ele despontou como aquele que resgata a extrema direita mais pura e sem complexos – o oposto da estratégia de Marine Le Pen.

Desde 2012, a líder se esforça para “desdiabolizar” a imagem do partido fundado pelo seu pai, Jean-Marie, conhecido pelos comentários racistas, xenófobos e antissemitas. Não à toa, Le Pen pai decidiu apoiar o polemista, e não a filha, nestas eleições.

A “renovação” da extrema direita encarnada por Zemmour é um argumento evocado com frequência pelos seus eleitores, muitos deles antigos militantes da Reunião Nacional. Até nas poucas cidades governadas por prefeitos do tradicional partido, como em Béziers, a adesão a Zemmour disparou.

“A candidatura dele mexeu com a direita e obrigou as pessoas a voltarem a falar de coisas que não queriam mais falar. Eu sou um patriota que adora a França e acho que a França não tem que ser um open space mundial”, afirma o médico Daniel Briot.

Até pouco tempo atrás, Briot agitava um grupo de militantes RN em Béziers, no sul da França, uma das regiões onde a extrema direita mais seduz eleitores. Agora, o anestesista mobiliza o comitê local do Reconquista!. “Zemmour é visto como extremista e Le Pen como a correta. Mas o Partido de Marine está moribundo”, argumenta o médico.

O médico Daniel Briot agitava o comitê de militantes do Reunião Nacional em Béziers – mas agora, trocou por Éric Zemmour.
O médico Daniel Briot agitava o comitê de militantes do Reunião Nacional em Béziers – mas agora, trocou por Éric Zemmour. © Lúcia Müzell/RFI

“Quando Marine Le Pen criou o novo partido, ela excluiu um monte de gente, colocou outras pessoas, promoveu algumas. Isso fez com que os velhos militantes, que estavam lá desde sempre, se sentissem traídos”, explica.

Clichês da extrema direita

Em meia hora de conversa em um café no centro da cidade, Briot, um senhor próximo da aposentadoria, evocou de prontidão a cartilha-padrão do eleitor de extrema direita: criticou os desmandos da União Europeia, as medidas sanitárias, o passaporte vacinal e o “catastrofismo” em torno da Covid-19, exaltou a cloroquina e lamentou o declínio da França – pelo qual culpou a esquerda, embora os socialistas tenham exercido a presidência apenas uma vez nos últimos 25 anos. Ainda enalteceu o presidente russo Vladimir Putin, zombou do “palhaço” ucraniano Volodymyr Zelensky e disse que desconfia das pesquisas eleitorais na França.

“Acho que pode haver uma surpresa. Sinto que podemos estar numa dinâmica semelhante à da eleição de Trump ou do Brexit”, acredita.

O taxista Bernard é outro que votou em Le Pen nas duas últimas eleições e agora vai experimentar a mudança, apesar dos riscos da divisão do eleitorado. Ele diz ter sido impactado pela debandada de dirigentes da Frente Nacional (FN) para o novo partido – até a sobrinha de Le Pen, Marion Maréchal, aderiu ao candidato, de quem poderia ser primeira-ministra em caso de vitória.

Bernard reconhece que Zemmour “às vezes exagera” nas declarações sobre os imigrantes, como quando prometeu proibir a atribuição de nomes estrangeiros aos bebês nascidos na França. Instantes depois, porém, disse que “pelo menos as ucranianas são bonitas” e “vão conseguir bons casamentos aqui”, quando assunto era a chegada de refugiados ucranianos no país, escapando da guerra.

"Zemmour é extremista demais”

O tema provoca mais uma cisão no campo da extrema direita. Contrariando suas posições históricas sobre a acolhida de imigrantes, a Reunião Nacional se sensibilizou com a guerra e estendeu a mão para os refugiados ucranianos. Já o Reconquista! permaneceu firme na decisão de evitar, ao máximo, a entrada de mais estrangeiros na França.

Para o corretor de imóveis Fabien B., 37 anos, a posição de Zemmour sobre o assunto foi determinante para ele manter o voto em Le Pen. “Eu gostava dos comentários dele na televisão, mas ele é extremista demais. A gota d’água foi quando ele disse que não queria receber os ucranianos, essas pobres pessoas que precisam de ajuda”, disse.

“Não é uma imigração como essa que a gente vê no ano todo. Os ucranianos estão em guerra e em algum momento eles vão voltar para o país deles. Eles não estão aqui para aproveitar o sistema de ajudas sociais da França”, complementou a esposa dele, a vendedora Alexandra, 30.

Casal Alexandra e Fabien vota em Marine Le Pen desde a sua primeira candidatura.
Casal Alexandra e Fabien vota em Marine Le Pen desde a sua primeira candidatura. © Lúcia Müzell/RFI

O casal refuta a ideia de que “todo o eleitor de Le Pen é racista”: ambos dizem não se opor à imigração, à condição que os estrangeiros se adaptem ao país e respeitem aos valores franceses.

“A gente não aguenta mais não poder passear tranquilamente sem ser agredido, ou ter medo, principalmente as mulheres. Há bairros onde simplesmente não podemos mais entrar sem que a gente seja agredido de alguma forma”, garante Fabien. “As pessoas não compreendem, mas é uma realidade em muitos bairros aqui. Com o tempo, fica pesado, e acho que o povo francês cansou disso.”

Eleitores abandonados pelos partidos tradicionais

A região fronteiriça com a Espanha é uma zona de passagem de migrantes que entraram no espaço europeu pelo país vizinho e seguem rumo a Calais, no norte francês, almejando terminar a viagem no Reino Unido. Também abriga, historicamente, comunidades ciganas e descendentes de magrebinos, que se instalaram na França a partir dos anos 1950.

Em Perpignan, “os árabes” e “os ciganos” têm os próprios bairros, Saint-Mathieu e Saint-Jacques, verdadeiros guetos a cinco minutos de caminhada do animado centro histórico. A cidade tem um dos mais elevados índices de pobreza do país, mas é nestes bairros que as desigualdades ficam mais evidentes: o nível de desemprego chega a 83% dos moradores de Saint-Jacques, contra 23% em toda Perpignan. Em plena manhã de uma quinta-feira, traficantes comercializavam drogas a poucos metros do mercado de Cassanyes, onde donas de casa de véu faziam compras.

“A gente não aguenta mais esses vagabundos na rua”, disparou uma comerciante, que preferiu não se identificar. “Em Paris, Emmanuel Macron não quer nem saber disso tudo. Então só nos resta Le Pen e Zemmour”, observa a senhora, ao fechar sua butique de acessórios, na divisa entre o “bairro cigano” e o centro.

Este contexto resultou na eleição, pela primeira vez na França, em 2020, de um prefeito da Reunião Nacional em uma cidade com mais de 100 mil habitantes – um marco para o partido. Embora o governo de Louis Aliot – ex-marido de Marine Le Pen – seja elogiado por todos os eleitores consultados pela reportagem, raros são os que aceitam conversar sobre a corrida presidencial. “Os políticos são todos iguais”, “não me interesso por política”, “vou votar em qualquer um, menos em Macron” foram as repostas mais ouvidas aos pedidos de entrevistas.

Voto de protesto

“Macron, basta! Eu vou votar no Zemmour para marcar um gesto forte contra Macron, que nos deixou na pior, na economia”, reclama o desempregado Thierry Barroux, sentado em um café. Deficiente físico, ele afirma se sentir “abandonado” pelos partidos tradicionais.

“É um voto de protesto, não de adesão. Concordo que ele é um pouco extremista demais e eu não sou nenhum extremista, pelo contrário. Me considero muito humano. Mas neste país, são sempre os mesmos que são ajudados. Uma pessoa que acorda todos os dias para ir trabalhar e ganha um salário mínimo não ganha mais ajuda do que uma que ganha bolsa do governo”, alega Barroux. “Eu vejo que os franceses podem se mobilizar, como agora, para a Ucrânia, e é claro que temos que ajudá-los. Mas agora eu só vejo Ucrânia, Ucrânia, Ucrânia. E os outros? Eles também existem.”

Desempregado, Thierry Barroux escolheu votar em Éric Zemmour para protestar contra Emmanuel Macron.
Desempregado, Thierry Barroux escolheu votar em Éric Zemmour para protestar contra Emmanuel Macron. © Lúcia Müzell/RFI

O historiador Nicolas Lebourg, especialista na história e no pensamento da extrema direita, vê em pessoas como Barroux o eleitor tipicamente suscetível aos discursos populistas de Le Pen ou Zemmour: homens sem diploma, que tiveram dificuldades em se adaptar às transformações econômicas impostas pela globalização na Europa e à perda das indústrias para a Ásia.

“São pessoas que não conseguiram se recolocar nesse novo cenário. O discurso contra os ‘aproveitadores’, sejam eles imigrantes ou assistidos, e a denúncia do capitalismo e a globalização, deu para eles uma leitura do mundo atual”, explica o pesquisador, coautor do livro Les extrêmes droites en Europe (As extremas direitas na Europa, em tradução livre).

“Já que o resto da paisagem política quase não dá espaço para essas pessoas, compreendemos por que eles vão votar em quem olha para eles. Não há muitas razões para um eleitor de uma zona rural, que tem dificuldade de encontrar um médico para a sua família ou achar uma escola boa para os seus filhos, votar no partido de Macron. E eles também não vão prestar muita atenção no discurso disperso da esquerda”, analisa.

Restrições à imigração impulsionam o voto na extrema direita, como em Béziers.
Restrições à imigração impulsionam o voto na extrema direita, como em Béziers. © Lúcia Müzell/RFI

As pesquisas de intenções de votos antecipam que, juntos, Zemmour e Le Pen recolherão entre 30 e 35% das cédulas no primeiro turno, em 10 de abril, no que seria um resultado espetacular para a extrema direita. A vantagem entre os dois é da líder da Reunião Nacional, que tende a sair vencedora e enfrentar Macron na decisão da eleição.

“Marine Le Pen tem um bloco formidável atrás dela, que qualquer político francês inveja: ela está enraizada nas classes populares. Na corrida presidencial, ela parte largamente na frente, na comparação com Zemmour”, ressalta Lebourg. “Mas é importante notar que, mais do que a aventura de Eric Zemmour, a batalha que está sendo travada é a da criação de um novo partido de extrema direita na França, sem a família Le Pen.”

Para o historiador Nicolas Lebourg, especialista em extrema direita, discurso radical de Zemmour deve impulsionar maior mobilização do eleitorado contrário à eleição dos dois candidatos extremistas.
Para o historiador Nicolas Lebourg, especialista em extrema direita, discurso radical de Zemmour deve impulsionar maior mobilização do eleitorado contrário à eleição dos dois candidatos extremistas. © Lúcia Müzell/RFI

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