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Saravejo tenta espantar traumas despertados pela guerra na Ucrânia, 30 anos depois do massacre

A Bósnia-Herzegovina relembra o início do cerco de Sarajevo de 1992 nesta quarta-feira (6). Para este trigésimo aniversário, nenhuma cerimônia conjunta foi planejada. Enquanto o país se dilacera, fragmentado entre comunidades étnicas ultranacionalistas, a guerra na Ucrânia reaviva todos os traumas do massacre, que manchou de sangue a história dos Bálcãs, com mais de 11.000 vítimas identificadas até hoje.

Uma mulher chora diante de um caminhão carregando os caixões de 136 vítimas do massacre de Saravejo, finalmente identificadas em 9 de julho de 2015.
Uma mulher chora diante de um caminhão carregando os caixões de 136 vítimas do massacre de Saravejo, finalmente identificadas em 9 de julho de 2015. REUTERS/Dado Ruvic
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Com os correspondentes da RFI na região

Na noite de quinta-feira, neste 31 de março, a Fábrica de Tabaco Sarajevo fechou definitivamente suas portas. Ela havia sido fundada em 1880, na época da ocupação austro-húngara da Bósnia-Herzegovina, e produzia cigarros baratos da marca Drina, que eram muito populares em toda a antiga Iugoslávia.

Durante a última guerra regional, tanto em Sarajevo como em outras cidades sitiadas, como Zenica, Tuzla ou Srebrenica, os salários dos funcionários públicos eram pagos em parte em caixas de papelão Drina, cigarros que eram até usados como moeda para comprar pão, um pacote de café ou óleo. É mais um símbolo que desaparece na cidade, enquanto Sarajevo comemora em clima de velório os 30 anos do início da guerra, em 6 de abril de 1992.

Naquele dia, milhares de cidadãos de todas as comunidades do país - muçulmanos bósnios, croatas, sérvios, mas também todos aqueles que não se identificaram com essas categorias nacionais, por exemplo, porque vinham de casamentos "mistos" - se reuniram diante do Parlamento para celebrar o reconhecimento internacional da Bósnia-Herzegóvina como um Estado independente. Foi nesse momento que os primeiros atiradores abriram fogo sobre a multidão, colocando Sarajevo em um cerco interminável.

Oficialmente, a ocupação não terminou até fevereiro de 1996, dois meses após a assinatura dos Acordos de Paz de Dayton em Paris, em 14-15 de dezembro de 1995. As duas primeiras vítimas foram Suad Delibegović e Olga Sučić, ele bósnio e ela croata. Seus nomes foram dados à ponte sobre o Miljacka, o rio em Sarajevo, perto do qual o jovem casal foi baleado, não muito longe do "Sniper Alley", a principal avenida que liga a cidade socialista moderna com o histórico bairro otomano.

Em 2012, no vigésimo aniversário do cerco, 11.541 cadeiras vermelhas foram alinhadas para formar uma enorme linha através do centro de Sarajevo em memória de todas as vítimas oficialmente registradas.

Este ano, no entanto, com exceção da cerimônia tradicional na chama eterna, que também lembra a libertação de Sarajevo pelos apoiadores anti-fascistas de Tito, em 6 de abril de 1945, as comemorações serão discretas

As "instituições mais complicadas do mundo"

Os Acordos de Paz de Dayton deixaram como herança à Bósnia-Herzegóvina "as instituições mais complicadas do mundo": o país é dividido em duas "entidades", a Republika Srpska e a Federação Croata-Bósnia, que por sua vez está subdividida em dez cantões, alguns predominantemente bósnios e alguns croatas, sem esquecer o distrito Brčko no norte, que tem um status especial.

"Esta aberrante máquina institucional serve sobretudo aos interesses dos partidos nacionalistas das três comunidades - Bósnia, Croata e Sérvia - que monopolizam o poder e não têm interesse em mudar", explica Tanja Topić, analista da Fundação alemã Friedrich Ebert em Banja Luka, a capital do distrito sérvio.

"Estes partidos nacionalistas precisam levantar tensões, especialmente no período pré-eleitoral", continua ela, enquanto as eleições gerais ainda estão agendadas para o segundo semestre de 2022. "Todos sabem muito bem que são corruptos e que tomaram nosso país como refém. E a única coisa que ainda faz as pessoas votarem neles é o medo do outro. Teoricamente rivais, esses nacionalistas realmente precisam uns dos outros para se manterem no poder. Mas desta vez, eles podem ter exagerado.

Desde o início do ano letivo em 2021, o líder sérvio Milorad Dodik iniciou de fato um verdadeiro processo de "separatismo rasteiro" da Republika Srpska, que pretende ter seu próprio sistema de justiça, seu próprio sistema tributário, assim como um exército e serviços de inteligência separados. Por sua vez, os nacionalistas croatas estão pedindo uma reforma eleitoral, o que reforçaria ainda mais a estruturação étnica do eleitorado na outra entidade, que eles compartilham com os bósnios.

Em 20 de março, as negociações sobre esta reforma, conduzidas sob a égide da União Europeia e dos Estados Unidos, fracassaram oficialmente. Sob estas condições, os nacionalistas croatas e sérvios ameaçam boicotar as eleições de 2 de outubro. Nesse dia, o país deverá renovar os numerosos parlamentos de todas as suas entidades, bem como sua presidência colegiada de três membros, composta por um bósnio, um sérvio e um croata. Se as eleições não forem realizadas, a Bósnia-Herzegóvina pode não entrar em guerra, mas entrará definitivamente em terreno desconhecido.

"O espírito cosmopolita de Sarajevo se foi"

Quando a Ucrânia foi invadida, as prateleiras dos supermercados de Sarajevo foram brutalmente esvaziadas de óleo e farinha. E, nas últimas semanas, as redes sociais locais têm zumbido com comparações com a Ucrânia: "Sarajevo 1992 - Kiev 2022, mesmo cenário".

"A situação política na Bósnia e Herzegovina é pior do que no início de abril de 1992. Não tínhamos armas e nosso país estava sob ataque, mas pelo menos suas fronteiras eram reconhecidas internacionalmente e tínhamos um governo legítimo. Hoje, o país está dividido em múltiplas entidades e, em vez de um governo, as chefias étnicas compartilham o poder e os benefícios do estado", diz Strajo Krsmanović. Antes de perguntar: "Se a guerra eclodisse novamente, quem defenderia a Bósnia e Herzegovina?"

Strajo Krsmanović dirige a Galeria Nacional de Sarajevo, uma das últimas instituições culturais "nacionais" do país. Um desafio em um país que não tem mais um Ministério da Cultura. Ele nunca sabe como vai pagar os salários de seus funcionários no final do mês: "Não temos autoridade de supervisão, o governo da Federação e o governo do Cantão de Sarajevo empurram a responsabilidade um para o outro e ninguém se sente obrigado a garantir nosso orçamento", diz à RFI.

Membro da comunidade sérvia, o homem de 70 anos trabalhou para a televisão da Bósnia-Herzegovina durante a guerra e nunca quis sair de Sarajevo, mesmo durante as horas mais pesadas do cerco. Mas, 30 anos depois, ele observa com amargura o quanto sua cidade mudou: a maioria dos croatas e sérvios que partiram não retornaram e, lamenta, "o espírito cosmopolita de Sarajevo desapareceu".

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