Assembleia da França rejeita moções de censura contra o governo e reforma da Previdência é aprovada
A França é palco de uma segunda-feira (20) tensa em que o governo da primeira-ministra Élisabeth Borne foi colocado à prova, após a imposição de uma controversa reforma da Previdência por decreto na última semana. O país inteiro acompanhou a votação de duas moções de censura que tinham o poder de dissolver a Assembleia, mas ambas foram rejeitadas.
Publicado em:
Daniella Franco, da redação da RFI
A primeira moção de censura reuniu 278 votos, faltando apenas 9 para que fosse adotada. A segunda obteve apenas 94 votos.
O resultado já era esperado e resulta na aprovação de uma controversa reforma da Previdência, que leva milhões de franceses às ruas em manifestações desde o início deste ano. Para a adoção das moções - mecanismo que tem o poder de derrubar o governo - seriam necessários 287 votos entre os 573 deputados que compõem atualmente a Assembleia francesa. Nenhuma das duas conseguiu o apoio necessário.
As duas moções foram registradas na semana passada, a primeira pelo grupo de deputados independentes Liot e a outra pelo partido de extrema direita Reunião Nacional. As iniciativas foram uma reação à utilização do artigo 49.3 da Constituição pela primeira-ministra para a adoção da reforma da Previdência sem o voto da Assembleia.
No entanto, a rejeição das moções de censura não significa que a reforma está automaticamente promulgada. A oposição deverá acionar o Conselho Constitucional - a mais alta jurisdição administrativa do país - o que pode dificultar a adoção do projeto de lei que pretende modificar o sistema de aposentadorias da França. A esquerda também deve propor um referendo sobre a questão.
Reações e protestos
Após o anúncio dos resultados das votações, vários membros do governo e deputados reagiram. No Twitter, Élisabeth Borne afirmou que "o caminho democrático" da reforma foi atingido. "É com humildade e gravidade que engajei minha responsabilidade e a de meu governo", disse.
Nous arrivons au terme du cheminement démocratique de cette réforme essentielle pour notre pays.
— Élisabeth BORNE (@Elisabeth_Borne) March 20, 2023
C’est avec humilité et gravité que j’ai engagé ma responsabilité et celle de mon Gouvernement.
Pour notre système de retraites par répartition.
Pour notre modèle social.
Já Jean-Luc Mélenchon, líder do partido da esquerda radical A França Insubmissa, fez um apelo em prol da "censura popular" que, segundo ele, "deve se expressar massivamente" para "obter a revogação do texto".
O deputado Aurélien Pradié, do partido Os Republicanos, de direita, fez um apelo para que o presidente francês, Emmanuel Macron, cancele "essa lei envenenada", afirmando que o governo de Borne tem "um problema de legitimidade". "Esse texto se tornou um problema para a nossa vida democrática", declarou, em entrevista ao canal BFMTV.
Logo após o anúncio dos resultados, centenas de manifestantes começaram a se dirigir à Praça Vauban, no 7.º distrito de Paris, nas proximidades da Assembleia Nacional. Aos gritos de "Macron, demissão", eles exigem a revogação da reforma e a demissão do governo.
"Negação da democracia"
Antes do início da votação, o presidente de cada grupo parlamentar discursou diante da Assembleia. Primeiro a falar, o deputado Charles de Courson, representante do grupo Liot, classificou a reforma de "injusta" e "negação da democracia". "Senhora primeira-ministra, você fracassou em reunir, você fracassou em convencer, você cedeu à facilidade e evitou a sanção do voto. Você provavelmente perderia essa votação, mas essa é a regra da democracia", disse.
De Courson se referiu ao recurso usado pela premiê, o artigo 49.3 da Constituição - que permite que um texto seja aprovado sem votação - impedindo que a reforma fosse votada pelos deputados na última semana. Segundo a imprensa francesa, o presidente Emmanuel Macron teria ordenado a imposição por decreto do projeto de lei ao perceber que faltavam dois votos para a aprovação do texto.
Em seguida, a presidente do grupo do partido Reunião Nacional na Assembleia, Laure Lavalette, não poupou Borne de críticas. "Recusando-se a retirar esta reforma e recusando-se a passar por um referendo, você mancha tanto a sua honra como nossas missões parlamentares", declarou. "Rumo à dissolução", reiterou a parlamentar, afirmando que, no caso de novas eleições, a extrema direita voltará "ainda mais numerosa" à Assembleia.
Já Aurore Bergé, presidente da coalizão governista Renascimento, defendeu a reforma da Previdência dizendo que ela deve ser adotada "pelo futuro da França". A deputada concentrou seu discurso nas críticas às alianças entre os diferentes partidos dentro da Assembleia para tentar derrubar o governo. "Tenho vergonha do tapete vermelho que vocês estenderam à extrema direita", declarou.
Mathilde Panot, deputada do partido da esquerda radical A França Insubmissa, comparou Macron a Calígula e classificou de "arrogante" a cúpula do governo por se negar a ouvir a revolta das ruas. "Nunca um presidente quis governar com tanto desprezo". Dirigindo-se ao presidente francês, a deputada afirmou: "Você não tem nenhuma legitimidade para realizar essa reforma e você sabe disso".
Muito aguardado, o discurso de Olivier Marleix, do partido Os Republicanos (direita) surpreendeu ao apontar falhas do governo. "O presidente da República não aprendeu nada com a crise dos coletes amarelos? Sem o respeito dos franceses, dos corpos intermediários, dos parceiros sociais, nada é possível", disse. No entanto, Marleix ratificou o apoio dos republicanos à reforma da Previdência "para salvar o sistema de aposentadorias".
No final da sessão, a primeira-ministra tomou a palavra e, em um tom irritado, repreendeu os deputados que iniciaram e apoiaram as moções de censura. Borne também defendeu a reforma, afirmando que o governo "nunca foi tão longe" no compromisso e no diálogo social, respeitando "todas as responsabilidades".
Revolta contra a reforma da Previdência
A reforma da Previdência era uma das promessas de campanha do presidente Emmanuel Macron, que foi reeleito graças a uma mobilização dos eleitores no segundo turno das eleições contra a candidata da extrema direita Marine Le Pen. Há meses os partidos da oposição contestam a necessidade deste projeto de lei, enquanto o governo alega que ele é essencial para reequilibrar o sistema que diz ser deficitário.
O texto foi apresentado no início janeiro pelo governo, prevendo passar a idade da aposentadoria dos 62 para os 64 anos. Entre as várias mudanças propostas, o projeto acaba com privilégios de alguns setores sendo acusado de prejudicar trabalhadores com os salários mais baixos e as mulheres. O executivo também é acusado de acelerar os debates para aprovar a reforma rapidamente: no total, deputados e senadores tiveram cerca de 50 dias para discutir o projeto.
Após ser votado pelo Senado, o texto voltou para a Assembleia de Deputados na última quinta-feira. No entanto, antes do início do voto, a primeiro-ministra Elisabeth Borne anunciou aos parlamentares que a reforma passaria à força, por meio do artigo 49.3. A decisão inflamou a oposição e incitou milhares de pessoas a saírem espontaneamente às ruas, para denunciar uma atitude autoritária do governo.
Desde 19 de janeiro, milhões de franceses atenderam às convocações das centrais sindicais para oito jornadas de greve nacionais e protestos. A próxima delas está prevista para esta quinta-feira (23), mas desde o anúncio da reforma por decreto, manifestações vêm sendo realizadas de forma espontânea em todo o país.
Pesquisas realizadas por diversos institutos de pesquisa nas últimas semanas mostram que, em média, 75% dos franceses são contra a reforma da Previdência.
NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.
Me registro