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Golpes de Estado na África refletem mudança histórica, diz Achille Mbembe, autor da teoria da necropolítica

Conhecido no Brasil por ter desenvolvido a teoria sobre a "necropolítica", o filósofo camaronês Achille Mbembe conversou com a RFI sobre os recentes golpes de Estado no continente africano e sua relação com o pós-colonialismo europeu, esclarecendo o porquê das muitas tentativas frustradas de estabelecer um diálogo contemporâneo com as ex-colônias.

Manifestantes pró-junta militar saíram às ruas em Niamey em protesto contra a visita de uma delegação da Cedeao. 8 de agosto de 2023
Manifestantes pró-junta militar saíram às ruas em Niamey em protesto contra a visita de uma delegação da Cedeao. 8 de agosto de 2023 AFP - -
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A África Ocidental passa por uma sucessão de golpes de Estado, o mais recente deles no Níger, em 26 de julho. De que eles são sintomáticos? E que sentido podemos dar ao número crescente de golpes de Estado nos países do Sahel, como é chamada essa região entre o deserto do Saara e as Savanas, no coração do continente africano? Para entender melhor os detalhes dessa dialética, a RFI entrevistou Achille Mbembe, filósofo camaronês, professor de história e ciência política na Universidade de Witwatersrand, em Johanesburgo.

RFI: Essa sucessão de golpes de Estado no continente africano seria um sintoma do que, na sua opinião?

Achille Mbembe: Acredito que esses golpes de Estado são a expressão de uma grande mudança. O ciclo histórico que começou após a Segunda Guerra Mundial, que levou a uma descolonização incompleta, acabou. A África está prestes a entrar em outro período de sua história, um período que será longo e que trará enormes transtornos. Qual será o resultado? É muito difícil saber no momento.

RFI: Você critica um certo pan-africanismo que hoje exige a derrubada de regimes, inclusive os democráticos.

A.M.: Isso é o que chamo de "neo-soberanismo", não "pan-africanismo". O neosoberanismo é uma visão empobrecida do que foi o pan-africanismo histórico, que era tanto uma visão de liberdade e democracia, quanto uma visão de justiça universal e solidariedade internacional. O neosoberanismo atual não se caracteriza por um desejo de história, ou seja, de autocontrole e responsabilidade consigo mesmo e com o mundo, mas sim por um desejo de substituir um "mestre" por outro. Nesse sentido, ele é mais uma fantasia do que uma ideologia que conduz à libertação do continente.

O neosoberanismo atual não se caracteriza por um desejo de história, ou seja, de autocontrole e responsabilidade consigo mesmo e com o mundo, mas sim por um desejo de substituir um "mestre" por outro. Nesse sentido, ele é mais uma fantasia do que uma ideologia que conduz à libertação do continente.

RFI: Na África, mais de 60% da população tem menos de 25 anos e há uma verdadeira lacuna entre as gerações, que você destaca em seus trabalhos. Você acha que esse é um dos motivos dessas crises?

Achille Mbembe: É um motivo fundamental. O entrelaçamento de conflitos de classe, porque as desigualdades continuaram a crescer, conflitos de gênero, porque há uma revolução invisível de mulheres em andamento na África, e conflitos geracionais. E a mudança demográfica do continente é, obviamente, assustadora, não apenas para a França, mas para o resto da Europa. E é esse medo que está no centro das políticas antimigração, que visam transformar o continente em uma prisão dupla. Acredito que essas são escolhas desastrosas que, no curto prazo, terão como troco um agravamento do que é preguiçosamente chamado, em minha opinião, de sentimento antifrancês na África.

RFI: Nesse contexto, a França é apresentada como a principal causa dos problemas enfrentados pela África francófona. O quanto você acha que essa acusação tem fundamento?

Achille Mbembe: Ela é infundada. Hoje, a França não decide tudo, nem mesmo em suas antigas colônias. Precisamos nos afastar dessa lógica de bode expiatório, que consiste em culpar os estrangeiros pela maioria de nossas próprias contradições. Obviamente, algumas das escolhas feitas pela França após a colonização se mostraram desastrosas. Eu diria que isso se deve ao papel desproporcional desempenhado pelo complexo militar e de segurança francês, que tem uma visão fobogênica da África, na qual a África é vista como um continente em risco, apresentando perigos tanto para si mesma quanto para seus vizinhos europeus. Esse tropismo marcial levou efetivamente a escolhas políticas desastrosas que, de qualquer forma, só beneficiaram as forças do caos e da predação. Portanto, muito mais do que o pano vermelho russo ou chinês, essas escolhas são responsáveis pela derrota moral intelectual e política da França na África hoje.

RFI:  A França deveria abandonar suas bases na África?

Achille Mbembe: O tempo está se esgotando. E todos os tipos de acelerações são esperadas porque a África entrou em um novo ciclo histórico. Somente aqueles que entenderem isso terão a chance de influenciar seu futuro.

RFI: Voltando ao golpe de Estado no Níger, a Comunidade dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) está apostando em sanções e na ameaça de intervenção militar para trazer de volta o regime do presidente Mohamed Bazoum. O que você pensa sobre isso?

Achille Mbembe: A diplomacia parece ter perdido seu lugar e status. O fato de termos passado a acreditar que todos os conflitos são resolvidos por meio de guerras e tensões econômicas é, na minha opinião, um testemunho da pobreza antropológica de nossos tempos. A longo prazo, a prioridade na África deve ser a desmilitarização de todos os aspectos da vida política, econômica, social e cultural. E para isso, precisamos investir maciçamente na prevenção de conflitos, no fortalecimento das instituições de mediação e no diálogo cívico e constitucional. A democracia sustentável não criará raízes com fuzis.

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