Acessar o conteúdo principal
Um pulo em Paris

Debate sobre direito ao suicídio assistido na França pode ser influenciado pela morte de Godard?

Publicado em:

A morte do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard ocorreu poucas horas depois de o governo francês relançar o debate sobre o direito ao fim voluntário e medicalizado à vida. Apesar de as duas notícias não terem relação, a opinião pública pode ser influenciada pela escolha de um grande ídolo, ícone do cinema contemporâneo?

O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, um dos fundadores nomes da Nouvelle Vague, morreu nesta terça-feira (13), aos 91 anos, após ter recorrido ao suicídio assistido.
O cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, um dos fundadores nomes da Nouvelle Vague, morreu nesta terça-feira (13), aos 91 anos, após ter recorrido ao suicídio assistido. REUTERS - Christian Hartmann
Publicidade

Já estava previsto na agenda do presidente francês, Emmanuel Macron, relançar o debate sobre o direito ao fim voluntário e medicalizado da vida, como a eutanásia e o suicídio assistido, proibidos na França. A discussão sobre esse polêmico assunto era promessa de campanha do chefe de Estado, que acredita que, depois de décadas de polêmica, é preciso avançar. O anúncio do presidente foi feito depois que o Comitê Consultativo Nacional de Ética (CCNE) - principal organismo administrativo e independente a cargo de analisar questões éticas na França - ter emitido um parecer favorável à evolução da legislação sobre práticas em prol do fim voluntário e medicalizado da vida.

Algumas horas depois, foi divulgada a notícia do falecimento do cineasta franco-suíço Jean-Luc Godard, aos 91 anos, pai do movimento Nouvelle Vague, um dos maiores nomes do cinema contemporâneo. Segundo o comunicado emitido pelo assistente da família Godard, o diretor recorreu ao suicídio assistido por sofrer de várias patologias invalidantes. O procedimento ocorreu na Suíça, onde existem diversas formas de assistência ao fim da vida, da eutanásia passiva à assistência ao suicídio. Nem todas essas práticas são enquadradas pela lei suíça, mas são autorizadas sob condições específicas.

Não há dúvidas de que a comoção com a morte de Godard foi muito maior do que qualquer polêmica relacionada à sua decisão de colocar um fim à vida. Mas no contexto em que o governo francês têm a iniciativa de relançar o debate sobre a questão, o falecimento do cineasta franco-suíço por suicídio assistido contribui para dinamizar as discussões. 

Godard nunca escondeu que era favorável à eutanásia. Em 2014, durante o Festival de Cannes, no sul da França, ele já havia reconhecido a possibilidade de recorrer a um suicídio assistido em caso de uma doença grave. O jornal Libération afirma que a morte do diretor foi "um ato de militantismo", para que essa escolha se tornasse pública. Em editorial, o diário afirma que para Godard, escolher o momento da morte "era algo indiscutível, uma questão de dignidade".

Lei francesa autoriza sedação, mas não eutanásia

A legislação da França proíbe a eutanásia ativa, ou seja, a administração deliberada de substâncias letais com a intenção de provocar a morte. Isso vale mesmo em caso do pedido do doente, impossibilitado de ter um papel fisicamente ativo no procedimento. Também proíbe a eutanásia no caso em que o paciente está inconsciente e a família ou o corpo médico se pronunciam a favor da morte. 

A lei francesa trata a eutanásia ativa como um assassinato, um crime punível com penas que vão de 30 anos de detenção à prisão perpétua. O código penal também prevê aos profissionais da saúde que decidirem realizar esse procedimento a proibição de continuar exercendo suas profissões. 

O suicídio assistido - quando um profissional da saúde ajuda um doente consciente a colocar voluntariamente um fim à vida - também é ilegal e punido por lei na França. A diferença desta prática em relação à eutanásia é o papel ativo do paciente, auxiliado a provocar sua morte por um profissional da saúde.

A lei Claeys-Leonetti, adotada em 2016 depois de uma primeira versão em 2005, enquadra o direito ao fim voluntário da vida de pessoas que sofrem de doenças incuráveis na França. Ela permite uma "sedação profunda e contínua até a morte" de doentes em fase terminal e em grande sofrimento, cujo prognóstico vital está comprometido a curto prazo. 

Neste procedimento legal, o paciente é sedado, recebe medicamento contra a dor e sua alimentação e hidratação são interrompidas. A prática pode ser realizada tanto no hospital como na casa do doente, sob a vontade dele, se estiver consciente. Caso esteja inconsciente, a família ou o corpo médico podem autorizar essa prática. 

Brechas na lei desagradam profissionais de saúde

No entanto, existem brechas na lei que complicam o recurso ao fim da vida. Atualmente, a prática da sedação contínua até a morte determina que o procedimento só é autorizado para quem tem uma expectativa de vida de "curto prazo", um termo estabelecido pela Alta Autoridade de Saúde da França como um período que vai "de algumas horas a alguns dias". 

Os profissionais de saúde que trabalham com tratamentos paliativos reclamam que a lei deixa fora os pacientes em fase terminal de uma doença incurável que têm uma expectativa de vida de médio prazo, por exemplo. Ou seja, não são contemplados aqueles doentes que estão em sofrimento devido a uma patologia gravíssima, sem cura e que têm chances de sobreviver apenas algumas semanas ou meses. 

Foi pensando nesses casos que o Comitê Consulativo Nacional da Ética da França se pronunciou nesta semana. O presidente do órgão, Jean-François Delfraissy, reconheceu que a legislação atual não responde a um certo número de situações e acaba prolongando o sofrimento de doentes para os quais não há nenhuma solução. Por isso, o grupo recomenda abrir o caminho para uma assistência ativa ao fim da vida a pessoas com o prognóstico vital comprometido "a médio prazo" e que sofram de doenças físicas ou mentais "insuportáveis e incuráveis".

Para que esse processo seja colocado em prática, condições estritas foram estabelecidas pelo comitê. A primeira delas é que o pedido do doente para uma assistência ao fim de sua vida seja "ativa, livre, clara e reiterada". A requisição deste paciente também deve ser analisada pelo corpo médico responsável pelo doente. Além disso, todos profissionais envolvidos neste processo podem se beneficiar da chamada "cláusula de consciência", ou seja, o direito de se opor a uma decisão ou de não cumprir o ato. 

Finalmente, para os especialistas do Comitê Consultativo Nacional de Ética da França, os debates sobre o direito ao fim voluntário da vida não devem se resumir à determinação legalização da eutanásia ou ao suicídio assistido. Eles sugerem que antes da realização de um referendo sobre a questão, um grande debate nacional seja realizado. 

Uma questão delicada para Macron

O presidente Macron se viu no centro de uma polêmica em março, em plena campanha eleitoral, quando era candidato à reeleição. Em uma viagem que à cidade de Fouras, no oeste da França, conversou com dois eleitores que pediram a legalização da eutanásia. Na época, Macron declarou ser "pessoalmente" a favor do modelo belga, que permite que doentes que lutam contra doenças graves e incuráveis, inclusive menores de idade, possam recorrer à eutanásia dependendo de várias condições. Por isso, o presidente é acusado pela oposição de tomar a decisão de reabrir o debate sobre o fim voluntário da vida baseado em uma convicção pessoal. 

Ao anunciar nesta semana sua decisão de criar um grupo de trabalho para tratar sobre a questão, Macron esclareceu que sua opinião pessoal não tem relevância, mas que, como chefe de Estado, ele se vê na obrigação de fazer a lei evoluir. Segundo ele, a legislação atual sobre a questão do fim voluntário da vida é "incompleta". 

Assim, o líder centrista anunciou o lançamento de uma "convenção cidadã" a partir do mês de outubro. Esse grupo será integrado por profissionais da saúde de diversas áreas, associações que militam pelo direito ao fim voluntário da vida, pacientes e parlamentares de todas as tendências políticas. Eles passarão seis meses trabalhando sobre o tema, consultando profissionais, pacientes, e representantes de todos os setores da sociedade que tenham relação com a questão do fim voluntário da vida. Paralelamente, uma comissão parlamentar será encarregada de avaliar a lei existente para compreender porque ela é falha hoje. 

Em março de 2023 a convenção anunciará o resultado dos trabalhos realizados e será decidido se a lei Claeys-Leonetti poderá ser modificada ou não. Macron se diz a favor à mudança do texto e não descarta a possibilidade de realizar um referendo nacional sobre a questão. 

A mais recente pesquisa sobre o direito ao fim voluntário e medicalizado da vida foi realizada em fevereiro pelo Instituto Francês de Opinião Pública (Ifop). A sondagem apontou que 94% dos franceses aprovam o recurso à eutanásia em caso de sofrimento extremo e doenças incuráveis. Já o recurso ao suicídio assistido é aprovado por 89% das pessoas ouvidas. 

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.