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Reportagem

Na região Norte, Auxílio Brasil e "agrados" aos pobres penam a reverter preferência por Lula

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Moacir vende tucupi, um caldo à base de raiz de mandioca típico do Pará, há mais de 40 anos no Mercado Ver-o-Peso, aclamado em Belém como a maior feira aberta da América Latina. Enquanto descasca a mandioca a golpes de facão junto dos colegas, o senhor de 69 anos alimenta uma discussão acalorada com um vizinho de banca. “Vá comer osso sem carne, então”, dispara Moacir, ao eleitor de Jair Bolsonaro.

Mercado do Ver-o-Peso, em Belém, é conhecido como a maior feira aberta da América Latina.
Mercado do Ver-o-Peso, em Belém, é conhecido como a maior feira aberta da América Latina. © Lúcia Müzell/ RFI
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Lúcia Müzell, enviada especial da RFI a Belém (PA)

"O primeiro presidente que olhou para a minha vida foi o Lula. Ele congelou o preço da comida, a gente comprava carne. Agora ninguém leva porque é caro”, explicou à reportagem da RFI. "Esse é o pior presidente que eu já vi. Só entrou para destruir, para a gente não ter mais nada. Até os remédios que eram para dar para os pobres, para os diabéticos, estão cortando. Esse presidente não gosta de pobre, mas o que o Brasil tem muito é pobre. Não é rico."

Na disputa pelo voto a voto na eleição de domingo (30), os dois candidatos finalistas cortejam o eleitorado de baixa renda, inclinado a tomar a decisão de última hora e suscetível a promessas de melhora da sua situação econômica e social. A população beneficiada pelo Auxílio Brasil, herdeiro do Bolsa Família de Lula, representa 26% do eleitorado.

"Esse presidente não gosta de pobre, mas o que o Brasil tem muito é pobre. Não é rico", afirma Moacir, vendedor de tucupi em Belém.
"Esse presidente não gosta de pobre, mas o que o Brasil tem muito é pobre. Não é rico", afirma Moacir, vendedor de tucupi em Belém. © Lúcia Müzell/ RFI

“Presentes” de última hora

Desde setembro, o governo Bolsonaro já anunciou 18 iniciativas que usam recursos públicos para cortejar os eleitores mais pobres. O candidato se orgulha de ter elevado o principal dispositivo de transferência de renda para R$ 600 e promete manter o valor – embora isso não esteja previsto no Projeto de Lei Orçamentária para 2023.

Bolsonaro também anunciou a oferta de empréstimo consignado na Caixa Econômica Federal para os beneficiários do Auxílio Brasil, num total de R$ 1,8 bilhão. Estes argumentos pesam na escolha daqueles que têm dificuldades para garantir o prato de comida do dia seguinte – em 20 de outubro, o Datafolha apurou que a intenção de voto destes eleitores em Bolsonaro subiu de 33% para 40%. Entretanto, o petista dispara na preferência deste público, com cerca de 60%.

"Isso é tudo jogada política, para ganhar votos. É lamentável porque isso é brincar com a situação das pessoas. Ele está brincando com coisa séria”, critica o vendedor Silvio Soares – que apesar de usar uma camiseta do Brasil, afirma que vai anular o voto e que “jamais" votaria em Bolsonaro devido à gestão da pandemia pelo presidente.

"Isso é tudo jogada política para ganhar votos", critica o vendedor Silvio Soares, que pretende anular o seu.
"Isso é tudo jogada política para ganhar votos", critica o vendedor Silvio Soares, que pretende anular o seu. © Lúcia Müzell/ RFI

No Pará, maior colégio eleitoral da região Norte e um dos Estados mais pobres do país, o mandatário teve o pior resultado no Brasil, com apenas 40% dos votos, contra 52,2% para o petista.

"Bolsonaro trata o tempo todo as mulheres como algo menor na sociedade. Tem falas machistas, falas contra a população da Amazônia, contra os indígenas. Bolsonaro, para nós, é uma ameaça”, critica a assistente social aposentada Nilde Souza, enquanto faz campanha por Lula nas ruas de Belém. "Ele não tem preocupação com o povo, não respeita o povo. Em vez de investir em saúde, em educação, ele investiu em armas. E agora ainda vai baixar a renda dos aposentados.”

Capitais x interior

"A base que recebe as políticas sociais compensatórias é a grande responsável pela votação do Lula nesta eleição”, explica o cientista político Edir Veiga, professor da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Tem dois tipos de eleitorado no Pará: o do interior, que trabalha para o agronegócio, é tudo Bolsonaro. Mas o trabalhador mais fragilizado, das cidades, é fiel à lembrança do Lula como aquele que foi o criador de políticas que levaram à redução e à eliminação da fome na nossa região. A opção pelo Lula é maciça entre os pescadores, uma população muito deficitária economicamente, assim como em toda a região metropolitana de Belém.”

Essa divisão se replica na região. Lula venceu em quatro dos sete Estados do Norte – Pará, Amazonas, Tocantins e Amapá –, enquanto o atual presidente foi o preferido naqueles onde a influência do agronegócio é mais forte – Roraima, Acre e Rondônia.

O vendedor Adilson Silva diz que ainda não tomou uma decisão sobre o que fará em frente à urna, mas está inclinado a confiar no ex-presidente. “A gente tem muita esperança que mude. O povo está ansioso para que entre uma pessoa de coragem, que respeite o povo, que tenha consciência de trabalhar e dar um pouco para o povo, porque só querem tirar do trabalhador”, analisa. "O Lula, se roubou… Tudo bem, mas a gente não vivia assim como hoje. A gente compra um pacote de leite e três dias depois já está mais caro”, conta.

A aposentada Neusa, 67 anos, está na mesma situação. "Eu ainda não decidi. Vai ser em cima da hora. Mas o que eu quero é que o presidente olhe para o pessoal mais pobre, que não tem condições, que está morrendo de fome”, alega. "Eu ganho um salário mínimo e venho aqui ajudar a minha filha na feira para ganhar um pouco mais, senão não consigo nem comprar os meus remédios. Lula, na primeira vez, olhou muito para nós, mas na segunda vez não. Então ainda não sei. Mas se for o Lula, eu quero que ele pense mais em nós.”

Peso da inflação

Uma pesquisa realizada na sequência do primeiro turno pelo cientista político Fernando Meireles, do Centro de Análises e Planejamento (Cebrap) e professor da Escola de Economia da FGV, traçou um mapa detalhado da votação nos municípios brasileiros. O estudo verificou que Jair Bolsonaro teve um melhor desempenho nas cidades menores, em relação à eleição de 2018, mas nas capitais registrou uma votação menos expressiva do que na eleição anterior.

Nas cidades com menos de 50 mil eleitores no Nordeste e no Norte, o presidente melhorou a própria votação média em mais de três pontos percentuais. Mas nas localidades maiores, ao contrário, perdeu uma pontuação ainda mais elevada.

"Municípios pequenos que receberam mais recursos do Auxílio Brasil acabaram dando mais votos válidos para Bolsonaro em 2022 do que em 2018. Porém, as capitais têm uma dinâmica própria muito diferente das cidades do interior, ligada ao emprego, aos preços e aluguéis”, esclarece o cientista político. “A melhora não foi suficiente para compensar a derrota que ele teve em vários estados, especialmente os do Nordeste. A única capital em que Bolsonaro melhorou a votação dele foi Fortaleza – em todas as outras, ele piorou.”

Independentemente do resultado final da eleição de 2022, o pleito consolida o bolsonarismo no espectro político brasileiro, inclusive em regiões improváveis, à primeira vista, como nos estados amazônicos do Norte e Centro-Oeste do país. Em uma política regional marcada pela violência, o aumento do assédio eleitoral aos eleitores contribui para o avanço de pautas antiambientais, na contramão da proteção da maior floresta tropical do planeta.
Independentemente do resultado final da eleição de 2022, o pleito consolida o bolsonarismo no espectro político brasileiro, inclusive em regiões improváveis, à primeira vista, como nos estados amazônicos do Norte e Centro-Oeste do país. Em uma política regional marcada pela violência, o aumento do assédio eleitoral aos eleitores contribui para o avanço de pautas antiambientais, na contramão da proteção da maior floresta tropical do planeta. © RFI/Lúcia Müzell

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