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Reportagem

‘Belle Époque Amazônica’: Belém conta com riqueza da cultura local para impressionar durante COP 30

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Futura sede da COP 30, a maior conferência da ONU, Belém do Pará tem identidade própria. São muitos brasis dentro de um Brasil que nem mesmo os brasileiros conhecem direito. A valorização da cultural local é uma das principais apostas dos belenenses nos preparativos do evento das Nações Unidas. 

A imensa estrutura de metal do Mercado Ver-o-Peso foi trazida de navio da Inglaterra.
A imensa estrutura de metal do Mercado Ver-o-Peso foi trazida de navio da Inglaterra. © Vivian Oswald
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Vivian Oswald, enviada especial a Belém

A região de personalidade forte, muitas facetas e cores de pele, mudou sua maneira de enxergar o mundo e ver-se nele. É isso o que Belém deve mostrar durante a convenção do clima, quando será o centro de debate de uma das questões que mais afligem o mundo. O "made in Pará” está na moda. E ele não é exótico, é padrão e tem narrativa própria.

Mesmo aos olhos do forasteiro, existe um sentimento evidente de valorização da identidade local. Está no que se consome, na expressão das várias formas de arte e artesanato e até no uso da linguagem.

No segundo município mais populoso da região norte do país, convivem a confusa área urbana de uma cidade que cresceu mais depressa do que a infraestrutura conseguiu acompanhar, a floresta e as suas 39 ilhas. Ali, os rios são as ruas. A lógica é outra.

Casa Paris n' América tem o interior do prédio inspirado na Art Noveau.
Casa Paris n' América tem o interior do prédio inspirado na Art Noveau. © Vivian Oswald

Vocabulário próprio

O vocabulário dos povos originários mistura-se ao português imposto pelos colonizadores da época do descobrimento. E tudo vira um conjunto de palavras e expressões nascidas e criadas aqui.

O orgulho da cultura local é o que os belenses chamam de "ser pavulagem”, neologismo originário de pavão. Na linguagem popular paraense, representa a pessoa “que gosta de aparecer”.

“Égua!”, é a interjeição de espanto. Para diferenciar o banheiros masculino do feminino, o badalado restaurante Remanso do Peixe usa as tabuletas “sumano" e “sumana”, subproduto da contração "seu mano" e "sua mana”.

Para o escritor e poeta Paes Loureiro, que é professor de História da Arte e Cultura Amazônica da Universidade Federal do Pará (UFPA), há um reconhecimento de valor pela sociedade amazônica.

“Esse é um fenômeno que é perceptível através, por exemplo, dos meios de comunicação, da produção artística, dos cursos que têm sido criados recentemente”, diz Paes Loureiro.

Belém se desenvolveu na esteira de ciclos econômicos. Foi entreposto fiscal no século XVII, aproveitou a abertura dos rios amazônicos como rota comercial no século XIX e surfou na onda da borracha no século XX, quando ficou conhecida como a “Paris Tropical” e viveu a sua "Belle Époque".

Naquela época, os belenenses endinheirados seguiam as modas do Velho Continente. Apesar do calor, vestiam-se com as muitas camadas de tecidos, como os europeus. Reproduziram a arquitetura europeia no meio da floresta. Importaram até pedras para o calçamento.

A imensa estrutura de metal do Mercado Ver-o-Peso foi trazida de navio da Inglaterra. Por essas e outras, a maior feira livre da América Latina é tombada patrimônio histórico.

Seu nome vem de Casas de Haver-o-Peso, afinal era o entreposto aduaneiro para a cobrança de tributos justamente sobre os produtos europeus trazidos para Belém, ou extraídos da Amazônia com destino ao mercado internacional. Até hoje, o prédio da Casa Paris N’America chama atenção. Em plena área comercial, onde belos sobrados acusam maus tratos, cercados de ruelas esburacadas por onde se espalham ambulantes e sujeira, o edifício art-nouveau é cenário obrigatório para os álbuns das noivas. Inspirado nas Galleries Lafayette de Paris, foi uma das primeiras lojas de departamento do Brasil, onde se encontravam roupas, perfumes, maquiagens e outros produtos trazidos diretamente da França para Belém. Hoje, é uma loja de tecidos.

"Houve uma transferência para a Amazônia e, sobretudo para Belém, Manaus, e algumas cidades do interior, da chamada Belle Époque europeia, francesa, inglesa, e, de certa maneira, portuguesa. Hoje, na verdade, é possível que esteja começando a acontecer uma Belle Époque Amazônica, originária da sua própria realidade, da sua própria produção artística e cultural, produção científica, reconhecimento de valor, criação de obras que passam a caracterizar a sua grandeza, a sua dimensão”, afirma.

Na Belém do futuro fala-se em bioeconomia e na produção de itens originais, nascidos ali. A paulista Fernanda Stefani entendeu isso há alguns anos, quando se mudou para Belém. Trader, ela fundou em 2009 a 100% Amazônia, empresa especialista em bioingredientes florestais não madeireiros e renováveis, que trabalha em colaboração com comunidades, cooperativas locais e agricultores familiares para potencializar o melhor uso da floresta amazônica.

Cultura local do Pará é valorizada em todos os locais.
Cultura local do Pará é valorizada em todos os locais. © Vivian Oswald

“Na verdade, a gente aprende que para você de fato ser bem sucedida na Amazônia, você tem que aprender com os amazônidas e olhar para trás, olhar o passado e olhar aquilo que deu certo aqui, mesmo que seja de uma maneira diferente. Mas é olhar para o passado para você poder escrever o futuro”, garante a executiva.

Stefani seguiu essa ideia à risca. Ao mudar-se para Belém foi atrás de um dos velhos casarões maltratados do centro antigo da cidade, que reformou e transformou em casa e uma espécie de pousada.

“É a mesma coisa a gente faz aqui nessa casa. Então a gente olha para o passado, a gente aprende com o passado, a gente entra numa casa como essa aqui é. Você vê ela, é uma casa agradável. Você está aqui, você não tem ar-condicionado aqui? Mas você olha e você traz o futuro, traz a modernidade aqui para dentro. Mas você não esquece do passado, você traz o passado junto. Isso é muito importante”, afirma Stefani.

Chocolato com cupuaçu

Fruto nativo da Amazônia, o cacau também ganhou novos significados. Ele ainda é vendido in natura às toneladas, como commodity. Mas tomou belas formas de chocolates gourmet, com embalagens caprichadas, assinadas por designers locais.

Personalidade conhecida em Belém, o chef Fabio Sicilia mergulhou na história do chocolate e viajou o mundo para saber traduzir na sua produção artesanal o espírito amazônico. Recentemente, seus chocolates com cupuaçu ganharam prêmios importantes em Londres.

Na ilha do Combu, a 15 minutos de voadeira de Belém, onde estiveram os presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e da França, Emmanuel Macron, dona Nena fabrica quadrados de chocolate preto com cacau da várzea, uma variedade local. Em sua loja, Filha do Combu, há também barras de chocolate Gaudens à venda. Mais do que concorrentes, são parceiros.

Durante a pandemia Sicilia ajudou dona Nena a moer cacau. A ideia é, que juntos, os muitos produtores e as comunidades amazônicas podem mais. Dona Nena ainda vende jogos americanos em formato de folhagens amazônicas feitas a partir do látex e lembranças — de bolsas a cerâmicas —assinados por artistas locais.

Um dos melhores restaurantes da cidade, o Sushi Ruy Barbosa, que fica na rua de mesmo nome, também tem um diferencial. Além de preparar seus pratos com peixes da Amazônia, não dispensa entre seus ingredientes, do sushi à sobremesa, o tucupi, o jambu ou a tapioca. Tudo tem um toque amazônico.

O "made in Pará” está na moda.
O "made in Pará” está na moda. © Vivian Oswald

Paes Loureiro afirma que parte dessa valorização se explica pelo avanço da comunicação e das novas tecnologias. A informação corre o mundo depressa. É cada vez mais difícil ver o que ainda não se viu. Isso teria provocado a busca pelo auto-conhecimento. O que se quer é mostrar originalidade.

Antes impunha-se o conhecimento externo, de fora da região, do país. O fenômeno descrito pelo professor de 84 anos, que é um dos mais importantes intelectuais da Amazônia, rompe um ciclo de longa data em que os próprios amazônidas foram ensinados a ver-se como diferentes do padrão. E esse é tema central da tese de doutorado de Paes Loureiro, que se transformou no livro “Cultura amazônica: uma poética do imaginário”. O imaginário amazônico, segundo ele, é parte da cultura da sociedade. Não se trata de mera folclorização, ou de peculiaridade.

“Que sempre representa para o mundo uma forma assim mítica de admiração, a dimensão mítica pela qual a própria Amazônia foi, digamos, encontrada. A própria Amazônia foi encontrada, porque era aqui que estaria o Paraíso na Terra, segundo o que a história nos conta, que foi a atração para que as pessoas pudessem viajar para cá e integrar isso, encontrar essa grande terra do mundo", afirma o professor e poeta. "Mas é preciso esquecer que essa era uma visão de busca de apropriação, de se apossar desse paraíso na Terra. E na tradição indígena, o que nós temos é uma interessante busca por uma Terra de igualdade para todos, busca da Terra sem males. Essa é uma utopia indígena presente na Amazônia brasileira, sobretudo. Mas se pode estender para a Amazônia continental”, diz o professor.

O Pará tornou-se destino incontornável para brasileiros e estrangeiros. É preciso saber se o estado vai aproveitar o momento atual e se lançar em novo ciclo de desenvolvimento e bonança. O estado ainda tem um dos piores IDHs (Índice de Desenvolvimento Humano) do país e as piores taxas de saneamento e acesso à água tratada. A COP30 pode ser um ponto de partida. Nem que seja para colocar Belém no mapa novamente, como disseram à RFI os próprios belenenses.

Para Waleska Queiroz, presidente da Rede Jandyras e representante institucional da COP das Baixadas, é muito importante garantir que esses movimentos de reconhecimento e valorização cultural, o “made in Pará”, ou “made in Amazônia” — que criam oportunidades, empregos, demanda e geram economia —, não se transformem em mais uma forma de exploração da cultura e do ambiente amazônico. E que as comunidades locais sejam as principais beneficiárias e guardiãs das suas próprias culturas.

“A COP pode ser também uma plataforma para destacar a importância da Amazônia nesse equilíbrio climático global e, principalmente, para a necessidade de adotar estratégias de ação que sejam ambientalmente e socialmente justas para o nosso território e as nossas populações. Isso representa também uma oportunidade para que a gente consiga mostrar ao mundo que Belém e a Amazônia como um todo não são apenas locais historicamente explorados que tem seus desafios, suas problemáticas, mas que são também espaços que fomentam a ciência, inovação, a tecnologia e a conservação do território”, diz a ativista.

"Eu, enquanto liderança local, ativista, cidadã, sempre me coloco nesse lugar de comprometimento, para promover essas questões importantes, sempre buscando também a valorização da nossa cultura, a preservação da nossa identidade, que são fundamentais para o reconhecimento global e a importância da Amazônia”, disse Queiroz.

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