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Beirute, a crônica de uma cidade entre guerras

A vista do Mediterrâneo é especialmente bonita saindo da Praça dos Mártires, antes de fazer a curva em direção ao bairro de Gemmayzeh, em Beirute. De um lado, a mesquita Mohammad Al Amin preenche todo o campo visual, passando pela monumental catedral de Saint-Georges. No entanto, todo e qualquer libanês indicará ao visitante desavisado a rua Damas (Damasco), a linha de demarcação invisível entre cristãos e muçulmanos, “durante a guerra”. Mas que guerra? 

Na Praça dos Mártires, Beirute, centenas de pessoas incendiaram pneus e bloquearam o tráfego durante a "revolução", os massivos protestos de 2019.
Na Praça dos Mártires, Beirute, centenas de pessoas incendiaram pneus e bloquearam o tráfego durante a "revolução", os massivos protestos de 2019. © RFI/Noé Pignède
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Márcia Bechara, enviada especial da RFI ao Líbano

Sabemos que a "Damas", a famosa “Linha Verde”, que separava os bairros muçulmanos do lado oeste da capital, dos cristãos a leste, é um marco histórico da guerra civil libanesa (1975-1990), onipresente no imaginário nacional. Uma olhada mais atenta aos blocos de prédios compactos crivados de bala à direita confirma a narrativa solene do amigo libanês - "ali agora fica o Amal [movimento aliado ao Hezbollah]." 

Mas uma infinidade de outros conflitos desenhou a identidade dessa capital, como cicatrizes que não mais escondem, mas redefinem as feridas coletivas, e individuais. A impressão que temos, conversando com inúmeros moradores da capital, é que a "linha de demarcação" continua mais presente e eficaz do que nunca entre cristãos e muçulmanos, dividindo a cidade em campos que se opõem, ameçando a tão desejada "unidade nacional".

A maioria cristã de Beirute, historicamente melhor educada e com maior poder aquisitivo, tolera a comunidade sunita muçulmana, mas suporta mal a população xiita, cada vez mais numerosa na periferia da cidade, controlada em sua maioria pelas milícias armadas do Hezbollah. 

Vista aérea da cidade de Beirute, com a mesquita  Mohammad Al-Amin Mosque à direita.
Vista aérea da cidade de Beirute, com a mesquita Mohammad Al-Amin Mosque à direita. Getty Images - Holger Leue

Essas feridas e cicatrizes fazem parte de pessoas reais, de gerações as mais diversas, de classes sociais diferentes, espalhadas nos quatro cantos da capital libanesa. Pessoas como a nonagenária Yvette Achkar, 94, que nasceu em São Paulo em 1928 e é celebrada nos quatro cantos do globo e nas grandes galerias norte-americanas como uma das maiores artistas da pintura modernista libanesa, e que recebeu a RFI em seu apartamento na grande Beirute, já na longa subida em caracol para o Monte Líbano.

Sobre a guerra civil libanesa, ela fala pouco, o olhar perdido nas montanhas que circundam a bela varanda do apartamento. Na "época da guerra", sua irmã, Aimée, viajou para a França para organizar uma exposição, e nunca mais retornou, porque teve o apartamento invadido por grupos que lutavam do lado palestino do conflito. As duas irmãs, que conheceram [o ex-prefeito e governador de São Paulo] Paulo Maluf na infância e embarcaram de volta para o Líbano em 1936, num navio do exército de Mussolini, cantarolam ainda, num português perfeito, antigas marchinhas de carnaval brasileiras, que aprenderam em Santos: "Vai, Getúlio [Vargas], vai Getúlio!"

 

Mas as guerras são muitas e variadas em Beirute, desafiando a suposta linearidade do tempo. Nas alamedas que antecedem o Parlamento libanês, as galerias vazias das lojas de marca deram lugar a um vácuo arquitetônico cheio de pichações, com a debandada das lojas e marcas de luxo depois dos protestos massivos de 2019, a “revolução”, movimento que, no domingo, elegeu 13 candidatos ao Parlamento libanês. A capital libanesa ainda ecoa, em maio de 2022, um enorme som de vazio, de diáspora, e de abismo.

Na rua que daria acesso ao Parlamento, uma surpresa: a passagem foi bloqueada de ambos os lados por largos blocos de concreto armado pelo governo libanês, temeroso da revolta popular. O sentimento dos libaneses em relação à inacessabilidade - simbólica e concreta - a seus deputados é expressa em pichações e afrescos derradeiros de street art - como as mãos pintadas que tentam "abrir" a galeria de cimento e ferro. 

Pichações nos blocos de concreto que fecharam o acesso da população à rua do Parlamento libanês, depois dos protestos massivos de 2019. Beirute, 14 de maio de 2022.
Pichações nos blocos de concreto que fecharam o acesso da população à rua do Parlamento libanês, depois dos protestos massivos de 2019. Beirute, 14 de maio de 2022. © RFI/Marcia Bechara

No bairro de Medawar, um dos principais QGs do tradicional partido Kataëb [Falanges Libanesas] em Beirute, um homem em uma cadeira de rodas elétrica se aproxima da reportagem, que fotografa o que parece ser uma espécie de monumento aos mortos. Trata-se de Charles, boné “Boss” na cabeça, um militante do partido cristão tradicional que perdeu a mobilidade “durante os conflitos de 1989” [com muçulmanos, que antecederam o Acordo de Taëf].

“O primeiro [nome] da lista [gravada no mármore] foi um dos que atacou o ônibus”, diz, numa surpreendente referência ao trágico evento de 13 de abril de 1975, na região de Aïn el-Remmané, quando um ônibus palestino foi fuzilado por integrantes do Kataëb, deixando 31 mortos, marcando o início da guerra civil libanesa. O mesmo Kataëb, que, nestas eleições, elegeu quatro deputados para o novo Parlamento libanês de 2022.

Omar Abi Azar é diretor e fundador da premiada companhia de teatro libanesa Zoukak, em Beirute, 17 de maio de 2022.
Omar Abi Azar é diretor e fundador da premiada companhia de teatro libanesa Zoukak, em Beirute, 17 de maio de 2022. © RFI/Marcia Bechara

Indo em direção ao porto de Beirute, no bairro de Karantina, um outro personagem nos aguarda, neste mosaico intenso de histórias humanas no Líbano. Omar Abi Azar é diretor e fundador da premiada companhia de teatro libanesa Zoukak, que trabalha há 15 anos com traumas de guerras, refugiados e outros grupos, recuperando o que resta de humano no sangue dos conflitos. 

Ele nos espera na sede nova da companhia, que, mal havia sido inaugurada em 2017, foi levada pelos ares durante a dupla explosão do porto de Beirute, em 4 de agosto de 2020. Apenas cinco minutos antes das explosões, Omar se encontrava com alguns integrantes da Zoukak dentro do local. Eles assistiram à tragédia a alguns metros do teatro, em um café, cujo teto desabou sobre eles: "se ainda estivéssemos lá dentro, teríamos todos morrido", diz Azar.

Para o celebrado diretor, dramaturgo e ator franco-libanês Wajdi Mouawad, hoje diretor do teatro nacional de La Colline, na capital francesa, "o hangar 12 do porto de Beirute [onde aconteceu a dupla explosão] é nada menos do que um eco do incidente com o ônibus de 13 de abril de 1975 [que deflagrou a guerra civil libanesa]", disse ao Le Monde em 2020. As guerras são muitas e se sobrepõem no Líbano, forjando a identidade de um país, e de uma capital - Beirute.

"Criamos essa companhia em 2006 porque queríamos fazer teatro profissional em Beirute", conta Omar Abi Azar, da companhia Zoukak. "O teatro aqui não é considerado uma profissão, mas um lazer, uma distração. Queríamos mudar isso. Mas, assim que começamos a ensaiar nosso primeiro trabalho, aconteceram os ataques israelenses sobre o Líbano. Pegos de surpresa pela realidade, ao invés de considerarmos que nosso sonho tinha se evaporado, fomos fazer teatro nos campos de refugiados que vinham do sul do país [fronteira com Israel] em direção a Beirute", diz Azar.

"Essa virou nossa base de trabalho. Fazemos intervenções de teatro em comunidades e situações de crise, trabalhamos em todos os campos palestinos no Líbano, com mulheres submetidas à violência doméstica junto com a associação Kafa e, em 2013, começamos a trabalhar na Europa com os refugiados que chegavam massivamente", relata o diretor.

Por do sol em Kfarchima, na periferia sul de Beirute, em 18 de maio de 2022. No horizonte, Dahiyé, vale dominado pelo Hezbollah.
Por do sol em Kfarchima, na periferia sul de Beirute, em 18 de maio de 2022. No horizonte, Dahiyé, vale dominado pelo Hezbollah. © RFI/Marcia Bechara

Chegou a hora de deixar Beirute, e o Líbano. Fazemos uma última visita a Kfarchima, na periferia sul, para vislumbrar a região da grande Beirute vista de cima. No vilarejo de casas simples, todos se conhecem, nesta cidade de maioria católica ortodoxa, ou maronita. No vale logo abaixo, tiros que parecem de fuzis cortam o silêncio da hora do almoço no vilarejo.

“Todo o vale que você vê abaixo, o Dahiyé, na periferia sul de Beirute, é dominado pelo Hezbollah”, conta um jovem morador do local. É assim o dia inteiro”, relata.

Entre as oliveiras e limoeiros que já se agitam nesta primavera quente do Oriente Médio, Beirute se prepara para abrir um novo capítulo de sua história, talvez com menos conflitos, e linhas de demarcação menos profundas. “A mudança não virá rapidamente, porque não se muda 45 anos de corrupção do dia para a noite. Mas talvez ela chegue a tempo para a próxima geração”, diz o jovem.

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