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"Desespero sufocante": ex-deputado fundador do partido de Hariri analisa eleição no Líbano

Moustapha Allouche, 63, é um verdadeiro pilar da vida política libanesa. Cirurgião, mas com especializações em teologia e filosofia, cita Heidegger e Spinoza com a mesma facilidade que critica a temida milícia armada do Hezbollah. O antigo combatente da sangrenta guerra civil (1975-1990), que lutou do lado palestino e que se considera hoje um "socialista liberal", recebeu a reportagem da RFI em um café tradicional na orla marítima de Trípoli, a segunda e a mais pobre cidade do Líbano.

O ex-deputado sunita Moustapha Allouche, cirurgião e ex-combatente da guerra civil libanesa, um dos grandes nomes da política no Líbano, fundador do Movimento do Futuro, partido do ex-premiê assassinado Rafic Hariri, e de seu herdeiro, Saad Hariri, que abandonou a disputa este ano. Tripoli, 12 de maio de 2022.
O ex-deputado sunita Moustapha Allouche, cirurgião e ex-combatente da guerra civil libanesa, um dos grandes nomes da política no Líbano, fundador do Movimento do Futuro, partido do ex-premiê assassinado Rafic Hariri, e de seu herdeiro, Saad Hariri, que abandonou a disputa este ano. Tripoli, 12 de maio de 2022. © RFI/Marcia Bechara
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Márcia Bechara, enviada especial da RFI ao Líbano

Ele chega no café tradicional onde marcou a entrevista com a simplicidade e a segurança que apenas os grandes caciques exibem em tempos de extrema instabilidade. Não é para menos: Moustapha Allouche, que abandonou estrondosamente o partido Movimento do Futuro em março deste ano, após tê-lo fundado ao lado de Rafic Hariri [icônico presidente libanês assassinado em 2005 em Beirute], rompe uma tradição política e se apresenta agora como candidato independente nestas eleições libanesas de 2022.

Antigo marxista radical, ele hoje tempera seu discurso com um "progressismo liberal", mas não mede palavras para criticar a milícia armada do Hezbollah, ou mesmo seu antigo aliado, o ex-premiê Saad Hariri, herdeiro de Rafic. O contexto não poderia ser mais propício a reviravoltas como essa: o porto de Trípoli, sua base eleitoral histórica, no norte do país, se tornou um importante local de escoamento, depois da dupla explosão do porto de Beirute.

No entanto, a cidade sofre exponencialmente de todo o rol de misérias provocado pela crise financeira e política no Líbano, com uma taxa de criminalidade elevada. No caminho em direção a Trípoli, a quantidade de bueiros que tiveram suas tampas roubadas pela população, pelo valor do ferro fundido de alta densidade - uma boa moeda de troca na crise -, é testemunha do desespero de muitos cidadãos libaneses.

Revolução sem perspectiva

“Infelizmente, toda a esperança que depositamos na possibilidade de evolução [durante os protestos] de 2019 se esvaneceu, porque o mesmo vírus do sectarismo e narcisismo libaneses na política infestou os líderes e membros dessa revolução”, analisa Allouche. “Reconhecemos hoje a falta de perspectiva política desse movimento que, tirando alguns slogans esparsos, não oferece alternativas. É por essa razão que não acredito que haverá uma mudança radical [nestas eleições]. Muitas lições foram aprendidas nesse processo, e, pelo menos, podemos renovar o Parlamento, seja como minoria ou maioria, para dizer um basta”, afirma.

“Não temos mais os bilhões de dólares do Hamas nos bancos, temos que começar a trabalhar em um governo unificado. As armas devem ficar com o Estado, os juízes precisam se sentir livres para trabalhar e precisamos liberar nossa economia da hegemonia política e do governo, para o Líbano poder ter uma chance de se recuperar”, opina o ex-deputado, visto como um dos líderes muçulmanos sunitas mais importantes do país. “Vamos tentar formar um pacto dentro do Parlamento para tentar fazer alguma diferença”, alega.

“Falta de esperança”

“A falta de esperança e o desespero estão sufocando esta cidade”, considera Moustapha Allouche. “Estamos tentando encontrar uma luz no fim do túnel, uma esperança. O problema específico de Trípoli é que todos aqueles melhor educados e com mais habilidades estão indo embora. A juventude está indo embora da cidade”, conta.  

“A maior parte da população local não recebeu educação, não foi à escola, não podem nem mesmo escrever em árabe. Vemos na imprensa local como escrevem mal o árabe. Percebe-se que nem mesmo a sua própria língua encontra utilidade no momento. Mesmo o francês, que foi a segunda língua na comunidade cristã, agora estamos perdendo”, contextualiza. “Temos pessoas de 20, 30 e até 40 anos iletradas, sem educação e sem nenhuma esperança”, diz.

Minorias e credos

“Sair da maioria [sunita, que controla o governo] me ajudou a conservar minha liberdade. Posso ser simplesmente um cidadão libanês, sem ter que necessariamente estar conforme às implicações de ser muçulmano, cristão ou druso. Isso me liberou das tradições e hegemonia de ser maioria”, afirma Allouche. “Há pessoas que insinuam que sua presença enquanto cristãos no Líbano começa a ficar perigosa”, relata.

“Ora, cristãos não são uma espécie em perigo no globo”, ironiza. “Eles são metade do mundo, não têm que ter medo. Mas a liberdade, esta sim, está em perigo no Líbano. Cristãos deixam o país [em busca de oportunidades em outros locais], mas os muçulmanos que ficam não têm liberdade de expressão. Somos todos nós. Cristãos e muçulmanos não são uma ‘espécie’, são pessoas”, diz.

"Fantoche do Hezbollah"

“Penso que é mais fácil para a Europa, e para a França especificamente, lidar com pessoas que são pragmáticas e mercantilistas”, provoca o ex-deputado e agora candidato, se referindo ao atual premiê libanês, o bilionário muçulmano sunita Najib Mikati. “Especialmente agora, com o problema na Ucrânia e depois da pandemia, a economia precisa se abrir. Provavelmente a economia é o X da questão hoje para países como França, Alemanha e Itália. Eles estão procurando mercados para [a fabricante de aviões] Airbus, [a gigante dos combustíveis] Total e a [montadora] Peugeot”, analisa.

“A meu ver, Mikati deve ser reeleito no domingo porque agrada tanto as milícias do Hezbollah, de quem é embaixador, quanto a sede das grandes economias europeias”, ataca o sunita. “Mas se o Hezbollah vencer, eles vão querer alguém que seja apenas mais um fantoche nas mãos do [secretário-geral do Hezbollah, Hassan] Nasrallah. É por isso que eu acho que Najib Mikati será o novo primeiro-ministro libanês. Mas ainda não temos certeza. Acredito que o futuro do Líbano enquanto unidade política e social está ameaçado neste momento”, afirma Allouche.

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