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Eleições legislativas do Líbano

Entenda como funciona o sistema político confessional no Líbano e por que ele é contestado

De acordo com a Constituição de 1926 e o Pacto Nacional de 1943, a república parlamentar do Líbano se organiza em torno de um sistema político confessional, ou seja, o poder público é distribuído entre diferentes comunidades religiosas. Embora 18 delas sejam reconhecidas no país, apenas três monopolizam posições-chave. A presidência fica com cristãos maronitas, o primeiro-ministro é tradicionalmente um muçulmano sunita e a presidência da Câmara dos Deputados é reservada a um muçulmano xiita.

O Líbano está passando por uma crise sócio-econômica sem precedentes, marcada por uma grave escassez. O racionamento draconiano de eletricidade às vezes chega a vinte e três horas de apagões por dia.
O Líbano está passando por uma crise sócio-econômica sem precedentes, marcada por uma grave escassez. O racionamento draconiano de eletricidade às vezes chega a vinte e três horas de apagões por dia. AFP - ANWAR AMRO
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A distribuição, em vigor atualmente no Líbano, foi baseada em um censo populacional que data de 1932. Naquela época, o equilíbrio entre o número de cristãos e muçulmanos era respeitado em termos de representação pública.

Mas o crescimento demográfico dos muçulmanos e seu sentimento de sub-representação dentro do sistema político libanês culminaram no Acordo de Taif, em 1989, após 15 anos de guerra civil. Esse Acordo resultou em uma distribuição mais equitativa do poder para os seguidores do Islã, segundo o cientista político libanês Joseph Bahout, da Universidade Americana de Beirute e professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris. 

Esse sistema tradicional, no entanto, foi visivelmente contestado durante os fortes protestos e manifestações que paralisaram o Líbano em 2019, quando o movimento se tornou uma espécie de vitrine mundial da "Primavera libanesa" contra a corrupção endêmica da classe política local.

A promessa de uma "revolução" durou pouco e hoje os libaneses se encontram mais uma vez abandonados entre uma desvalorização recorde da moeda, fome, uma inflação galopante e uma contundente falta de esperança no futuro.

Estado laico?

Logo após a dupla explosão no porto de Beirute, em agosto de 2020, o presidente [cristão maronita] Michel Aoun chegou a pedir a proclamação de um "Estado laico", e o presidente de origem muçulmana xiita da Câmara dos Deputados, Nabih Berri, também se pronunciou a favor da mudança do sistema confessional, que, segundo ele, seria "a fonte de todos os males". Na ocasião, apenas o polêmico partido militarizado Hezbollah, hoje uma importante força política libanesa, defendeu o sistema político tradicional. 

No entanto, para Joseph Bahout, a contestação do sistema político confessional libanês é antiga no país. "O discurso anticomunitarista não tem nada de novo, ele é muito antigo no Líbano, sempre existiu. Mas sempre houve uma força social e política que o sustenta, mas ela nunca foi majoritária, e esse é exatamente o problema", contextualiza.

"Mas existem duas coisas que se confundem atualmente: um discurso antissistema, anti-classe política, anticorrupção, e uma contestação do sistema confessional como sistema de governança, como pacto nacional, como sistema de distribuição do poder. Não se deve confundir esses dois discursos", afirma Bahout. O especialista estima que existem muitos libaneses que estão hoje neste discurso antissistema, "mas que não sabem exatamente se são mesmo contra o sistema confessional".

Joseh Bahout explica que mesmo uma parte das forças que se proclama contra o sistema confessional tempera esse discurso com a situação do país e, sobretudo, com as relações de poder desiguais entre o Hezbollah e suas armas e a sociedade, o que impede a discussão de um verdadeiro debate sobre a mudança do sistema político no Líbano. "Esse parte da população esconde sua incapacidade de realmente querer abordar a contestação ao sistema confessional através da tensão causada pela presença do Hezbollah", avalia.

"Eles dizem 'assim que o Hezbollah for desarmado, poderemos falar disso'. Porque existem três níveis nessa contestação. O primeiro afirma que quer mudança, mas de maneira indefinida. Um segundo, que diz que quer a saída do sistema confessional hoje porque o país não é mais governável desse jeito e um terceiro que diz 'queremos mudança, mas não podemos falar sobre isso hoje, falaremos depois'", diz Bahout.

"Invenção" da imprensa internacional

Para o cientista político, a contestação do sistema confessional vem se tornando, no entanto, cada vez mais forte. "A imprensa internacional exagerou muito o tamanho da revolta de 2019. Havia um sensação de 'saco cheio' e um desejo de mudar as classes políticas. Mas dizer que uma maioria nas ruas em 2019 estava claramente pedindo uma saída do sistema confessional foi uma invenção porque estava na moda", critica.

Na opinião do especialista, as eleições legislativas do 15 de maio não terão o poder de sacudir o sistema político tradicional do país, o que deve gerar decepção entre os que esperam por mudanças. "Essas eleições vão reconduzir o sistema atual ao poder, composto em grande parte por forças majoritárias atuais, e vão introduzir marginalmente, talvez 10 ou 12%, algumas figuras novas, que não poderão ser consideradas exatamente como forças políticas novas", analisa.

A líbano-brasileira Joelle Bachalany, que votou neste domingo (8) nas eleições libanesas antecipadas para expatriados, confirmou, em entrevista à RFI, a análise de Joseph Bahout. Questionada sobre o desejo de mudar o sistema confessional, ela confessa ter dificuldade de responder. 

"Por um lado, gostaria que acabasse, mas por outro, não. Atualmente, se acabar, as minorias não vão ter voz. Hoje em dia, a minoria no Líbano são os católicos, quase sempre fora do país. A maioria dentro do Líbano é muçulmana. Se isso [a divisão por comunidades religiosas] mudar, eu não sei como ficaria... Por enquanto, deveria ter essa partilha, mas com mais democracia", conclui.

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