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ELEIÇÕES LEGISLATIVAS DO LÍBANO

Saiba o que está em jogo na 1ª eleição libanesa após os protestos de 2019 que paralisaram o país

Cortes de eletricidade diários que duram mais de 10 horas. Uma inflação galopante que desvaloriza a libra libanesa em 80%, num país que já foi considerado a "Suíça do Oriente Médio", e que hoje só realiza transações básicas em dólar – e em espécie. Escândalos de corrupção endêmica, uma classe política que negocia entre si para não deixar o poder, e um partido militarizado – o Hezbollah – que sequestra o debate político no país, são alguns dos temas das eleições legislativas de 2022 no Líbano.

Manifestantes nas ruas de Trípoli, a segunda maior cidade do Líbano, em 22 de outubro de 2019.
Manifestantes nas ruas de Trípoli, a segunda maior cidade do Líbano, em 22 de outubro de 2019. REUTERS/Omar Ibrahim
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Os brasileiros com nacionalidade libanesa que se cadastraram para votar nas eleições legislativas do Líbano, previstas para 15 de maio, poderão fazê-lo por antecipação neste domingo (8), nos consulados de Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Para o cientista político Joseph Bahout, diretor do Instituto de Políticas Públicas e Internacionais e professor da Universidade Americana de Beirute, existe uma complexidade adicional na disputa de forças políticas no contexto destas eleições libanesas de 2022

"Primeiro existem as forças tradicionais, que estruturam a vida política libanesa há décadas, com um acento dominante do Hezbollah sobre o sistema político e militar atual, junto com seus aliados, como o movimento Amal, do qual faz parte o presidente [muçulmano xiita] da Câmara dos Deputados", explica. "São alianças imperfeitas, porque são flutuantes e tempestuosas, junto com o partido do presidente da República [cristão maronita, Michel Aoun], o Movimento Patriótico Livre", elabora Bahout.

"Depois, existe um grupo de forças políticas que participou enormente do poder público depois do fim da guerra [civil, que durou 15 anos], mas que agora estão divididos na polarização contra e a favor do Hezbollah. Aqui encontramos o partido de Walid Jumblatt, o Partido Socialista Progressista [de origem religiosa drusa, uma corrente derivada do Islã, e mais particularmente do xiismo Ismaili]. Neste grupo se encontram também os [muçulmanos] sunitas, que hoje se encontram acéfalos depois que [o ex-primeiro ministro] Saad Hariri abandonou a política, que deixa um vazio político cheio de lideranças que tentam se apoderar dessa herança. Mas eles estão em plena crise, porque perderam seu principal líder, e o premiê libanês atual [Najib Mikati] tenta encarnar essa figura, mas não consegue, porque é politicamente limitado", detalha o especialista.

Joseph Bahout destaca ainda no complexo cenário destas eleições de 2022 "a grande força cristã", "as Forças Libanesas, a ex-milícia cristã durante a guerra, hoje em dia posicionada contra o presidente da República [católico maronita]; também o partido Katā'ib [Kataeb], conhecido como Falanges Libanesas, mais uma oposição a Aoun, e, além disso, os [candidatos] independentes, ou seja, figuras cristãs que emergem da sociedade civil e que apoiam as reivindicações das ruas, e que hoje estão um pouco desarticulados e desorganizados", diz.

Um manifestante bloqueia uma rodovia ao norte de Beirute, Líbano, em 8 de março de 2021.
Um manifestante bloqueia uma rodovia ao norte de Beirute, Líbano, em 8 de março de 2021. AP - Hussein Malla

Contestação

O cientista político repertoria atualmente cerca de 150 movimentos e personalidades que encarnam a contestação do sistema político libanês, "forças que são realmente impossíveis de listar com precisão". "Durante os últimos dois anos, eles não puderam se aliar e produzir um programa comum. São pessoas que tentam concorrer agora nestas eleições fazendo alianças a torto e a direito", diz. "É por isso que, na maior parte das zonas eleitorais [sendo o voto libanês definido por regiões], temos cinco ou seis listas, sendo que deveríamos a princípio ter duas, no máximo três, uma ligada ao poder, uma de oposição e uma lista de oposição ao sistema político", explica. "Não há limite para número de candidaturas no Líbano, todos podem se candidatar", completa.

Quem lucra com a saída de Hariri do cenário político libanês?

O ex-primeiro ministro libanês Saad Hariri anuncia sua aposentadoria da política libanesa durante uma coletiva de imprensa em Beirute, na frente de uma foto de seu pai Rafik Hariri, segunda-feira, 24 de janeiro de 2022.
O ex-primeiro ministro libanês Saad Hariri anuncia sua aposentadoria da política libanesa durante uma coletiva de imprensa em Beirute, na frente de uma foto de seu pai Rafik Hariri, segunda-feira, 24 de janeiro de 2022. AP - Hussein Malla

"Lucram [com a saída do sunita muçulmano Saad Hariri] antes de tudo os mais poderosos, ou seja, a classe política libanesa tradicional, as velhas lideranças, as forças políticas bem estruturadas que sustentam o país e compartilham não apenas o poder político, mas as riquezas do Líbano. Também os partidos regionais e internacionais [a Arábia Saudita, que financia os sunitas, e o Irã, que sustenta o Hezbollah, por exemplo, mas também a Síria, o Golfo e os EUA], que se aproveitam dessa divisão e que apadrinham uma ou outra dessas forças políticas", detalha Bahout.

"Com certeza, o único que não lucra com isso é o povo libanês", ironiza o especialista. "O povo hoje sofre por ter perdido todas as suas economias, por não ter acesso a um mínimo vital de serviços cotidianos como eletricidade, água e segurança, e isso está produzindo algo que se tornará muito grave daqui a pouco, que é a fuga crescente de libaneses para o estrangeiro", diz. 

"É, na verdade, um país que está morrendo, junto com aqueles que o asfixiaram, que permanecem agarrados ao navio e que continuam tentando tirar algum benefício, apesar da derrocada", denuncia.

Financiamento "escandaloso" da vida política libanesa

"O financiamento destas eleições é extremamente escandaloso", destaca Bahout. "Sempre houve muito dinheiro na vida política libanesa, vindo do estrangeiro ou da corrupção local, mas, desta vez o que é gigante em termos de fraude eleitoral é que, pela primeira vez durante muito tempo existe uma lei sobre o teto de despesas eleitorais, e esta lei está sendo completamente ultrapassada. Os tetos são amplamente ultrapassados e ninguém controla isso", aponta.

"A segunda coisa que é muito escandalosa é a crise econômica que vivemos. Somos hoje um país onde há uma incapacidade a ter acesso a contas bancárias, o que significa um controle mais ou menos informal de capitais. Também não conseguimos emitir talões de cheques nos bancos. A libra libanesa perdeu 80% de seu valor e, ao mesmo tempo, vemos personalidades ou movimentos políticos gastarem milhões de dólares, sem compreendermos de onde isso vem. É impossível que o sistema libanês possa produzir esse dinheiro neste momento", avalia.

"Isso virou uma espécie de máfia, a partir de contas no estrangeiro. No Líbano, é mais ou menos como no Brasil, as televisões pertencem a movimentos políticos e dedicam a seus respectivos candidatos um tempo infinito de exposição midiática, sendo que outros não possuem o menor acesso às mídias. Os que querem ter acesso a elas devem oficialmente pagar uma soma de dinheiro para aparecer na TV, existe mesmo um preço que é publicado nos jornais para isso, por exemplo U$ 10 mil por um minuto, US$ 100 mil por um programa, é completamente escandaloso", indigna-se.

Polarização causada pelo Hezbollah no debate político libanês

Um combatente do Hezbollah segura a bandeira de seu grupo diante de uma estátua do general iraniano Qassem Soleimani e faz um juramento de fidelidade, durante uma cerimônia para comemorar o segundo aniversário de seu assassinato, no subúrbio do sul de Beirute, Líbano, na terça-feira, 4 de janeiro de 2022.
Um combatente do Hezbollah segura a bandeira de seu grupo diante de uma estátua do general iraniano Qassem Soleimani e faz um juramento de fidelidade, durante uma cerimônia para comemorar o segundo aniversário de seu assassinato, no subúrbio do sul de Beirute, Líbano, na terça-feira, 4 de janeiro de 2022. AP - Hussein Malla

"Existem três questões que fragmentam e dividem hoje o debate político no Líbano. A primeira é a questão da crise econômica, dessa falência, a segunda é a que diz respeito ao Hezbollah, suas armas e a violência que o movimento exerce em sua própria comunidade, além de sua ligação com o Irã, e a terceira é a natureza do sistema confessional político libanês [dividido entre comunidades religiosas]", explica Bahout.

"O problema é que a manobra midiática dos últimos meses fez com que o Hezbollah tenha se tornado praticamente a questão prioritária e quase única. Uma grande parte de todas as listas eleitorais se alinham pró ou contra essa questão. Com muita hipocrisia também, porque muitos extrapolam a violência na radicalidade de suas reações, sendo que todo mundo sabe muito bem que essa será uma questão que será resolvida seja pelo diálogo interno, seja por um arranjo regional ou externo. Ou seja, a questão do Hezbollah é simplesmente um enorme argumento eleitoreiro, que serve para mobilizar as massas, mas que tensiona muito a sociedade e as relações políticas e sociais no país", finaliza Bahout.

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