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Plano de recuperação aprovado em Bruxelas é um sucesso ou confirma a fragilidade da União Europeia?

Após cinco dias e quatro noites de negociações, marcadas por reprovações e divergências, os líderes europeus finalmente alcançaram seu plano de recuperação econômica pós-pandemia de Covid-19. Mas as discussões em Bruxelas representam de fato uma mudança histórica na gestão financeira da União Europeia ou as concessões feitas aos países ditos “frugais”, defensores do rigor orçamentário, trazem os ingredientes para uma futura fragmentação do bloco?

O primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis (à esquerda), conversa com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchez (centro), e a chanceler alemã, Angela Merkel, durante a cúpula da UE encerrada nesta madrugada em Bruxelas.
O primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis (à esquerda), conversa com o primeiro-ministro espanhol, Pedro Sanchez (centro), e a chanceler alemã, Angela Merkel, durante a cúpula da UE encerrada nesta madrugada em Bruxelas. JOHN THYS / POOL / AFP
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O aspecto inédito do acordo que estabeleceu um orçamento de € 1.074,3 trilhão para o período de 2021 a 2027 e um fundo de recuperação econômica de € 750 bilhões (cerca de US$ 840 bilhões) é o fato de que pela primeira vez a Comissão Europeia tomará dinheiro emprestado nos mercados financeiros em nome da UE, contraindo uma dívida compartilhada pelos 27 estados membros do bloco. Esta nova competência acordada para Bruxelas será limitada "em volume e em duração". O reembolso da dívida deve terminar em 2058, no máximo. Do volume total, € 390 bilhões serão entregues aos países na forma de subsídios, que serão reembolsados pelos 27 em conjunto, e € 360 bilhões como empréstimos, a serem devolvidos por cada país.

O ex-presidente francês François Hollande declarou que o plano representa “um progresso maior na solidariedade entre os 27”. “A capacidade dada à Comissão para tomar um empréstimo dará à UE recursos adicionais para acelerar a transição ecológica”, disse o socialista em um comunicado.

O ex-premiê conservador Jean-Pierre Raffarin saudou a sintonia encontrada entre França e Alemanha, as duas maiores economias do bloco, que se apresentaram unidas diante da oposição do grupo formado por Holanda, Áustria, Dinamarca e Suécia, revigorado com o apoio da Finlândia, contrário a doações generosas.

Para vários opositores, no entanto, as concessões feitas aos “frugais” demonstram a fragilidade do acordo. Marion Aubry, eurodeputada do partido da esquerda radical A França Insubmissa, declarou que o presidente Emmanuel Macron “pensa ter salvado a Europa, quando na realidade ele cedeu em vários pontos”.

“Haverá menos subvenções do que defendia o Parlamento Europeu, maior controle visando a austeridade, e nenhuma linha sobre a forma como essa dívida será reembolsada”, disse Aubry. O líder do partido, Jean-Luc Mélenchon, apontou no Twitter as mesmas críticas. “Macron cedeu em tudo: na redução da contribuição dos países ‘pão-duros’, nos controles das despesas, na diminuição do valor do pacote de relance etc.”, atacou Mélenchon.

A Comissão Europeia irá avaliar os planos nacionais de recuperação, um relatório que os países deverão aprovar, na sequência, por uma maioria qualificada dos 27 (55% dos países que representam 65% da população). Sob pressão da Holanda, porém, ficou estabelecido que um país pode enviar um sinal de alarme quando considerar que um sócio não cumpre as reformas definidas, e o caso seria levado para debate entre os líderes do bloco. O desembolso seria suspenso à espera da discussão. Essa possibilidade de “veto disfarçado” cria um precedente perigoso, segundo vários analistas.

Descontos na contribuição ao orçamento do bloco criam desconforto

O jornal francês Les Echos destaca que o acordo só foi bem-sucedido graças a concessões sobre a participação de certos estados membros no orçamento europeu. Apesar da insistência de muitas capitais, incluindo Paris, os descontos concedidos aos países “frugais”, que consideram sua contribuição ao orçamento desproporcional ao que recebem, foram mantidos e até aumentados em comparação ao planejado antes da cúpula.

Analistas recordam que o ex-primeiro ministro britânico David Cameron favoreceu a aprovação do Brexit com esse tipo de discurso. Les Echos cita uma famosa réplica de Margaret Thatcher – "Eu quero meu dinheiro de volta" –, lançada em 30 de novembro de 1979 em uma cúpula europeia. Mais de 40 anos depois, prevalece o espírito “cada um por si”. Alguns veem nessa concessão o germe de futuras deserções do bloco, como aconteceu no Reino Unido com o Brexit.  

Na lista de “prêmios”, a Áustria obtém o máximo, assinala o jornal Les Echos. Seu desconto na contribuição total para o próximo orçamento da União Europeia (2021-2027) é de € 565 milhões, um aumento de 138%. A Dinamarca segue com € 377 milhões (+ 91%), a Suécia com € 1,07 bilhão (+ 34%) e a Holanda com  € 1,92 bilhão (+ 22%). A França pagará parcialmente a conta, enquanto o desconto de € 3,67 bilhões concedido à Alemanha não mudou com as negociações.

A líder de extrema direita francesa Marine Le Pen chamou o plano de recuperação europeu de "o pior negócio para a França na história da União Europeia". "Para proteger seu ego, ele [Macron] sacrifica nosso futuro e nossa independência: impostos europeus, abandono de nossa agricultura, colossal compromisso financeiro do país", tuitou Le Pen. Segundo ela, “a França contribuirá para um fundo sobre o qual não terá o controle da alocação e contribuirá (…) sendo um contribuinte deficitário".

Em um comunicado à imprensa, o partido de Marine Le Pen acrescenta que enquanto "uma onda de falências e demissões está chegando no outono, a França decide se mutilar financeiramente para alimentar uma visão ideológica e antinacional da Europa chamada +União Europeia+".

O líder do partido conservador Os Republicanos no Senado, Bruno Retailleau, disse temer a criação de um "novo imposto" para pagar a dívida comum e a retomada do emprego "na China".

Em nome dos deputados comunistas, Pierre Dharréville expressou um julgamento "bastante severo" sobre o acordo que equivale a "uma solidariedade enganosa, com desconto".

O soberanista Nicolas Dupont-Aignan estimou que Macron enganou os franceses com um plano "que custará ao nosso país o dobro do que trará".

O presidente do grupo Agir Juntos na Assembleia Nacional, Olivier Becht, saudou o estabelecimento do "federalismo orçamentário", apesar dos "limites" da regra da unanimidade, o que levará a "pensar em um embrião do governo europeu".

O fundo de recuperação pós-Covid-19 foi concebido para ajudar os países mais afetados pela pandemia e que já se encontravam endividados. Assim, a França irá receber € 40 bilhões em subvenções a fundo perdido, Itália e Espanha terão € 60 bilhões cada um, Portugal obteve € 15,3 bilhões, enquanto a Grécia deverá herdar pouco mais de € 70 bilhões do fundo de apoio. Outros recursos serão adicionados a essas quantias já volumosas, mas obtidos por meio de empréstimos realizados por cada país.

O primeiro-ministro grego, Kyriakos Mitsotakis, disse que Atenas gastará esse dinheiro com moderação. “A resposta da UE é muito ambiciosa e representa um sucesso nacional", afirmou Mitsotakis. Porém, na capital grega, os moradores abalados por dez anos de crise financeira permanecem cautelosos.

A chanceler alemã Angela Merkel vê a conclusão da cúpula europeia como um sucesso. O presidente Emmanuel Macron disse que o plano aprovado pelos europeus representa uma mudança histórica no modo de funcionamento do bloco e vai fortalecer o euro como moeda internacional.

Com informações de agências e correspondentes da RFI

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