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Uso desproporcional da força pela polícia é questionado no Brasil e na França

As 44 mortes registradas nas operações policiais dos últimos dias em Guarujá (SP), no Rio de Janeiro e na Bahia, em Camaçari e Itatim, tiveram repercussão na Europa. O jornal espanhol El País dizia ontem que essas "matanças" estão longe de serem casos isolados no Brasil. "O país é conhecido por ter uma das forças policiais mais violentas do mundo, mas a imprensa brasileira só começa a dar atenção quando os assassinatos envolvem dezenas de cadáveres", assinalou El País.

Policiais da tropa de choque em Marselha. 1° de julho de 2023
Policiais da tropa de choque em Marselha. 1° de julho de 2023 © CLEMENT MAHOUDEAU / AFP
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Na França e na Alemanha, o canal BFMTV, o jornal Le Figaro e o diário alemão Die Zeit, por exemplo, destacaram as reações a esse alto número de mortes, principalmente a frase do governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, que disse ter ficado "extremamente satisfeito" com o resultado da operação no Guarujá, enquanto ONGs e o governo federal apontaram "uma reação desproporcional" da polícia paulista após o assasinato do PM da Rota Patrick Bastos Reis. 

Guardadas as diferenças de contexto do tráfico de drogas e do crime organizado no Brasil, a questão do uso excessivo da força pela polícia é um assunto de intenso debate na França, um país que, segundo estudos, tem a polícia que mais matou cidadãos na Europa nos últimos 20 anos. Uma diferença flagrante em relação aos vizinhos europeus é que policiais franceses fazem patrulhamento urbano armados de pistolas e lançadores de balas de borracha (LBD), que não são letais, mas podem causar ferimentos graves. 

As autoridades francesas buscam valorizar o trabalho da polícia como uma instituição a serviço dos cidadãos, necessária ao bom funcionamento da democracia. Mas muitas vezes fecham os olhos para abusos dos agentes. 

Garçom de Marselha perde visão e parte do crânio com tiro de bala de borracha

No final de julho, um garçom de 22 anos foi espancado e levou um tiro de bala de borracha na cabeça de um grupo de policiais em Marselha. O homem perdeu a visão de um olho e teve uma parte do crânio amputado pelos médicos, para salvá-lo de uma hemorragia. Este cidadão está deformado para o resto da vida. Em depoimento, os policiais disseram que o garçom estava envolvido em um quebra-quebra, o que a vítima, descendente de árabes, nega com veemência. 

O policial autor do disparo foi identificado e cumpre prisão preventiva, mas mesmo assim foi defendido pelo ministro do Interior, Gérald Darmanin, e pelo chefe da Polícia Nacional, Frédéric Veaux. Uma das regras básicas de utilização do lançador de balas de borracha consiste em não mirar a cabeça das pessoas, por ser uma arma de defesa. O mais surrealista é que numa reação de corporativismo típico, 800 policiais de Marselha e de outras cidades francesas pararam de dar atendimento ao público nas delegacias, em protesto contra a prisão preventiva do colega. Atualmente, há delegacias com as portas trancadas e um aviso que os policiais só atendem chamados de urgência.

Parte dos policiais se colocaram sob o abrigo de um dispositivo conhecido como código 562, no jargão policial, que permite a eles realizar apenas as missões urgentes e essenciais. Outra parte tirou licença médica. Mas nesta sexta-feira (4), a Direção Geral da Polícia Nacional, a mesma que defendeu o policial indiciado e preso por violência com agravante, avisou que irá recusar os atestados médicos de agora em diante. Como os policiais franceses não podem fazer greve, eles recorrem a esse tipo de pretexto. 

O chefe da polícia de Paris, Laurent Nuñez, escreveu em uma nota interna da secretaria que "o número importante e inabitual de atestados de curto período estava causando graves distúrbios à segurança e ao funcionamento dos serviços prestados pela polícia". 

"Insegurança jurídica"

Na quinta-feira (3), dois sindicatos de polícia, Alliance e Unsa Police, aumentaram a pressão sobre o Ministério do Interior. Em um comunicado conjunto à imprensa, as duas entidades disseram que os agentes se encontram em uma situação de "incerteza jurídica", uma vez que podem ser detidos no exercício de suas funções". O texto acrescentava que "cada um deve avaliar até que ponto vale a pena se expor ao risco de trabalhar". 

Na França, existe uma tensão constante entre o Poder Judiciário e a polícia, que considera os juízes muitas vezes indulgentes na atribuição de penas aos delinquentes. Os juízes se defendem, afirmando que adotam as penas previstas nas leis. 

Quando acontecem erros, ou policiais são flagrados em situação de uso desproporcional da força, os sindicatos de polícia alegam que "a sociedade está cada vez mais violenta", que os agentes "enfrentam enorme pressão no trabalho", risco de vida cotidiano, problemas de cansaço crônico, insônia, divórcios e suicídios acima da média de outras profissões. Alguns se julgam realmente acima da lei. Mas a maioria dos juízes enfrenta essa pressão com imparcialidade. 

Negros, árabes e pobres

Em geral, na França, as vítimas de abuso de força policial são negros, descendentes de imigrantes, principalmente árabes, e pobres, como no Brasil. Por outro lado, os policiais franceses não chegam nas periferias atirando aleatoriamente. O tráfico de drogas e armas é um problema grave na região parisiense e em Marselha. Mas as autoridades privilegiam as investigações com técnicas de Inteligência para desmantelar as redes criminosas e são até criticadas por proteger os policiais desse contato frontal com traficantes armados. 

Diferentemente do Brasil, a polícia é uma corporação nacional na França, subordinada ao Ministério do Interior. O IGPN é o organismo equivalente às Corregedorias, encarregado de investigar irregularidades na atuação dos policiais. O ministro neste posto é popularmente chamado de "policial número 1" do país, e tende a defender a corporação que dirige. Mas nos últimos anos, com a generalização das câmeras de segurança nas ruas, outras acopladas nos uniformes dos policiais e ainda imagens feitas pelos cidadãos com seus telefones celulares têm sido frequentes as denúncias e provas de uso desproporcional da força.  

No início de julho, logo depois da morte de um adolescente de 17 anos, que levou um tiro à queima-roupa de um policial em uma blitz perto de Paris, a ONU disse que "era hora da França se debruçar seriamente sobre os problemas profundos de racismo e discriminação racial na polícia". O governo francês protestou, considerou essa condenação excessiva e sem fundamento. Mas o policial autor desse disparo está preso e será provavelmente julgado, apesar de ter sido muito defendido por colegas.

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