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"Um vizinho tentou se esconder em sua garagem e foi morto a tiros de bazuca": moradores de Bucha relatam horrores à RFI

Dezenas de corpos de civis foram descobertos no último fim de semana em Bucha, cidade da periferia de Kiev tomada pelas tropas russas durante um mês. As imagens de corpos pelas ruas, muitos deles decapitados, chocaram o mundo. A RFI enviou dois repórteres ao local para conversar com sobreviventes que, embora aterrorizados com o massacre, ajudaram a reconhecer e a recolher os restos mortais de familiares e amigos. 

A ucraniana Ira Gavriluk perto dos corpos do marido e do irmão, mortos em frente à sua casa em Bucha, na periferia de Kiev, Ucrânia, segunda-feira, 4 de abril de 2022.
A ucraniana Ira Gavriluk perto dos corpos do marido e do irmão, mortos em frente à sua casa em Bucha, na periferia de Kiev, Ucrânia, segunda-feira, 4 de abril de 2022. AP - Felipe Dana
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Vincent Souriau e Sami Boukhelifa, enviados especiais da RFI a Bucha

O comandante Stanislav Poloukhin pede que o motorista pare o carro. No chão, corpos de dois civis, um deles decapitado. O crânio, quase mumificado, foi colocado nos pés do cadáver. Não há mais rosto e os dentes foram arrancados. Como, quando e por que isso ocorreu? O militar não tem respostas sobre as atrocidades descobertas nas ruas de Bucha.

"Não faço ideia do que pode ter ocorrido aqui. O que posso dizer é que esses cadáveres estão aqui há alguns dias, ao menos duas ou três semanas, talvez mais. Olhem o estado em que estão. Realmente não sei como morreram, talvez uma mina explodiu por aqui. Mas não posso confirmar", diz.

Bucha foi um dos primeiros alvos dos russos na tentativa de tomar Kiev. Foi a partir desta cidade, na periferia da capital ucraniana, que a Rússia atacou Irpin durante semanas. No entanto, ao contrário de várias localidades, a infraestrutura de Bucha parece quase intacta: as estradas não foram danificadas, os prédios continuam em pé. Mas todos se perguntam porque os moradores tiveram esse destino, o que aconteceu com esses corpos largados pelas ruas

Um corpo de uma pessoa, que segundo os moradores foi baleado por soldados russos, jaz na rua em Bucha, Ucrânia, em 3 de abril de 2022.
Um corpo de uma pessoa, que segundo os moradores foi baleado por soldados russos, jaz na rua em Bucha, Ucrânia, em 3 de abril de 2022. REUTERS - STRINGER

A equipe da RFI chegou na segunda-feira (4) à cidade, onde viu alguns cadáveres carbonizados, outros desmembrados, abandonados pelas calçadas e no meio das estradas. Um homem, aparentando ter cerca de 60 anos, parecia estar atravessando a rua com mantimentos ao ser alvo de tiros. Outros corpos foram descobertos ao lado de crateras de granada, com as cabeças arrancadas. Nenhum deles está vestido com uniformes militares, ao contrário, todos eles estão com roupas de civis, tênis, moletom, blusas de lã, casacos de inverno. 

Extremamente abalado, o comandante pede para o motorista continuar. A paisagem é desoladora, de uma cidade inteira varrida por combates. Poloukhin não esconde sua revolta: "Eu odeio Putin e seu exército. E todas as pessoas que apoiam a guerra contra a Ucrânia. Quero que tudo isso acabe. É claro que eu gostaria de me vingar, mas eu não desejo essas atrocidades ao povo russo. Os cidadãos russos são inocentes, de certa forma, são prisioneiros em seu próprio país". 

Tanya Nedashkivs'ka, 57 anos, chora a morte de seu marido, morto em Bucha, na periferia de Kiev, Ucrânia, segunda-feira, 4 de abril de 2022.
Tanya Nedashkivs'ka, 57 anos, chora a morte de seu marido, morto em Bucha, na periferia de Kiev, Ucrânia, segunda-feira, 4 de abril de 2022. AP - Rodrigo Abd

Sobreviventes traumatizados

O comandante e seus homens abordam civis que conseguiram escapar do massacre, a maioria pessoas idosas, traumatizadas. Mykola Zakharchenko diz à RFI ter testemunhado moradores sendo assassinados a sangue-frio pelas tropas russas. "Vi uma mulher ser morta ao lado de onde eu moro. Ela correu, tentou se esconder, queria entrar em uma casa... e bam!", relata.

Segundo ele, no dia em que os russos chegaram à cidade, no final de fevereiro, "eles explodiram todos os carros com uma bazuca". "Um homem estava cozinhando fora de sua casa, e foi morto por nada, sem nenhuma razão. Ele deveria ter uns 70 anos", conta Zakharchenko.

Um de seus vizinhos, que ousou deixar o abrigo subterrâneo onde se escondia, teve o mesmo destino. "Eles atiraram contra suas pernas e o deixaram no chão. Tudo isso eu vi com os meus próprios olhos", garante.

Cadáveres de cinco homens, na cidade de Bucha, nos arredores de Kiev, Ucrânia, 4 de abril de 2022.
Cadáveres de cinco homens, na cidade de Bucha, nos arredores de Kiev, Ucrânia, 4 de abril de 2022. REUTERS - MARKO DJURICA

Depois que as tropas russas deixaram Bucha, Zakharchenko também ajudou a recolher os corpos das ruas. "Vi quando um vizinho tentou se esconder em sua garagem e foi morto a tiros de bazuca. Eu fui até lá retirar seus restos mortais. Enchemos quatro sacos plásticos e enterramos."

Na impossibilidade de transportar os cadáveres até o cemitério, muitos são enterrados nos jardins em frente às casas. Zakharchenko afirma que ajudou a retirar corpos das ruas com uma retroescavadeira, levando-os até uma fossa comum cavada perto dos trilhos de Bucha. 

Cenas de horror

Outra moradora de Bucha, Natalia Stepanenko, conta à RFI ter testemunhos de episódios aterrorizantes. Durante um mês, ela se escondeu em casa, onde montou barricadas com sua família. De buracos na janela, ela acompanhou a chegada de tanques russos.

"Estávamos trancados, como reféns. Queria ir ver meu vizinho, mas sua casa foi queimada. Quando pudemos sair e nos reencontrar, nos abraçamos. Ele chorou, disse que não tem mais nada. E quando virei minha cabeça, vi todos os esses cadáveres no chão", conta.

Em torno dela, os impactos dos tiros esburacaram o chão. "Éramos bombardeados o tempo inteiro e tivemos que nos esconder no porão durante um mês. Foi assim que sobrevivemos às bombas e aos ataques. Enquanto isso, na casa ao lado, soldados chechenos faziam festa todas as noites", reitera.

"Me virei, vi todos esses cadáveres no chão": diz um morador de Bucha, que se tornou um cemitério a céu aberto.
"Me virei, vi todos esses cadáveres no chão": diz um morador de Bucha, que se tornou um cemitério a céu aberto. REUTERS - STRINGER

Por enquanto, o número de vítimas definitivo ainda não pôde ser estabelecido em Bucha, mas o necrotério da cidade está lotado. Seguei, um coveiro voluntário, diz ter contado cerca de 300 corpos pelas ruas, apenas um deles vestindo uniforme militar. 

Para enterrar as vítimas, fossas comuns também foram cavadas atrás da igreja de Bucha. No total, três trincheiras foram complemente preenchidas de sacos mortuários. Segundo o padre do local, essa é uma solução temporária. Ele diz esperar que todas os mortos serão exumados, serão homenageados em uma cerimônia religiosa e ganharão uma sepultura decente. 

Fossa comum aberta para enterrar as vítimas de Bucha, na Ucrânia, em 4 de abril.
Fossa comum aberta para enterrar as vítimas de Bucha, na Ucrânia, em 4 de abril. AP - Rodrigo Abd

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