Acessar o conteúdo principal

A Argentina e Milei sob as sombras do século XIX

O que o presidente recém-eleito Javier Milei pretende ao remontar um passado idealizado da Argentina? Ele explicitamente ignora as reivindicações sociais e as lutas políticas dos próprios imigrantes que impulsionaram a economia no século XIX. E defende uma reinserção subalterna ao que agora se chama de cadeias globais de produção. No entanto, as conjunturas de 130 anos atrás não voltam mais

O presidente eleito da Argentina, Javier Milei.
O presidente eleito da Argentina, Javier Milei. AP - Natacha Pisarenko
Publicidade

 

Logo Le Monde Diplomatique
Logo Le Monde Diplomatique © RFI

Gabriel Passeti*

No domingo, 19 de novembro de 2023, Javier Milei foi eleito presidente da Argentina. Logo após a divulgação do resultado, ele fez um pronunciamento, dirigido a seus apoiadores, que foi transmitido pela televisão e pela internet. Seu tom replicou o modelo do ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, em uma visão própria do “make Argentina great again”.

Em diferentes momentos, ele se remeteu a um passado idealizado ao afirmar que sua meta será fazer do país de novo uma potência mundial. Com esse objetivo, seria preciso “retomar o caminho que nunca deveríamos ter perdido” e, em suas palavras, para tal, “não vamos inventar nada, vamos fazer as coisas que a história demonstrou que funcionam. Vamos fazer o mesmo que fizemos no século XIX em nosso país”.

Os usos do passado pelos políticos sempre ocorreram. Na Argentina, esse é um tema recorrente, e a memória, inclusive a do século XIX, está em constante disputa e sob revisionismos por parte de todos os campos do espectro político. O que propomos a seguir é uma análise de qual leitura sobre aquele período aparece no discurso do presidente eleito e quais mensagens ele passou ao público argentino que podem não ter ficado claras a estrangeiros.

A liberdade e a violência

Mote central de sua campanha, “liberdade” foi palavra-chave gritada diversas vezes. Por mais que isso possa parecer apenas uma referência ao liberalismo econômico, as referências levantadas por Milei também são outras. Ele se disse contra a violência política e a perseguição ao afirmar que, “nesta nova Argentina, não há lugar para os violentos, não há lugar para quem viola a lei para defender seus privilégios”. Havia ali uma referência clara, para o público amplo, ao peronismo e ao que já prevê como a atuação incisiva das oposições contra as propostas econômicas do novo governo.

Segundo ele, “hoje voltamos a abraçar as ideias da liberdade, as ideias de Alberdi”. Ao dizer isso, ele procurou se vincular a um importante personagem político do passado: Juan Bautista Alberdi (1810-1884), reconhecido como um dos pais do liberalismo político e econômico naquele país. Ele foi um dos expoentes da chamada Geração de 1837, opositora e por fim perseguida pelo governador de Buenos Aires, Juan Manuel de Rosas, principal nome da política argentina da primeira metade do século XIX. Aquele governo foi caracterizado pela forte repressão a seus opositores políticos, que se exilaram no Uruguai e no Chile. Em sua fala, Milei se coloca como herdeiro de Alberdi. 

Essa posição política e a tentativa de se vincular a personagens do século XIX são bastante presentes no cotidiano do país. Os peronistas e parte da esquerda (que não são necessariamente a mesma coisa), por exemplo, associam-se e reverenciam Juan Manuel de Rosas, suas ações nacionalistas e sua proximidade com os homens comuns do campo.

Não deixa de ser importante ressaltar, no entanto, como a crítica de Milei à violência estatal contra opositores é seletiva, já que se refere à perseguição promovida por Rosas em meados do século XIX. Por outro lado, ele e sua vice, Victoria Villarruel, defendem a mais recente ditadura civil-militar (1976-1983), propõem uma visão revisionista sobre as violências do período e pretendem libertar da prisão os militares condenados por crimes contra a humanidade.

Juan Bautista Alberdi, o único personagem do passado diretamente citado em seu pronunciamento, foi retomado por uma parte dos liberais argentinos por conta de uma série de escritos do fim de sua vida críticos à onipotência do Estado, visto como negação das liberdades individuais. Aquele político, no entanto, foi um personagem muito mais complexo do que uma simples versão argentina do liberalismo norte-americano, como essa leitura pós-trumpista pretende fazer.

Ele foi o principal artífice da Constituição argentina de 1853, esteve no governo na década de 1850 e viveu anos na Europa como diplomata e depois como exilado. Foi um liberal, mas também um adversário político de outros dois liberais centrais para a construção estatal da Argentina: o general Bartolomeu Mitre, primeiro presidente do país, e seu sucessor, o intelectual Domingo Faustino Sarmiento. Como chefes do Executivo, eles são geralmente mais associados à implementação do liberalismo no país do que Alberdi.

Nesse jogo político, Alberdi se tornou, por exemplo, profundo crítico da Guerra da Tríplice Aliança (a Guerra do Paraguai para os brasileiros) e acabou sendo, ironicamente, resgatado pela esquerda revisionista crítica aos militares e à ditadura a partir dos anos 1970. Ele foi um homem muito mais multifacetado do que essa leitura simplificadora atual pretende mostrar, e o campo liberal na Argentina também foi mais amplo e contraditório.

Mais uma vez recorrendo à cultura política dos Estados Unidos, o presidente eleito comentou sobre os “pais fundadores” da Argentina e como estes – não citados diretamente – teriam sido responsáveis por fazer com que, “em 35 anos, de um país de bárbaros passássemos a ser a primeira potência mundial”. A Argentina jamais foi a primeira potência mundial. Entretanto, esse trecho de sua fala e esse vocabulário político – a “barbárie” – remetem à política de combate a líderes provinciais (os caudilhos), às populações do campo (os gaúchos) e ao genocídio indígena.

Este último foi colocado em prática ao longo do século, em especial na chamada Conquista do Deserto, série de expedições militares executadas a partir de meados da década de 1870 com o objetivo declarado – e por isso genocida – de eliminar a presença física e as resistências dos cacicados indígenas dos pampas e liberar enormes parcelas de terras para a agricultura, a pecuária e os investimentos estrangeiros. Qualquer argentino entendeu essa referência. Aos argentinos é bastante evidente, quando se fala de “um país de bárbaros”, que não se trata de índices de educação, e sim de uma política de limpeza étnica.

Mais uma vez aqui é apresentada uma leitura específica sobre a violência. Milei justifica aquelas ações como essenciais para um passado idealizado da Argentina. Para tal, recorre a Alberdi, transformado em defensor do Estado mínimo, garantidor da propriedade privada e do comércio. Em suas palavras, Milei se diz “libertário”, mas esse é um termo do século XIX que em nada se associa à sua concepção de sociedade e ao que ele defende. Para os libertários, como Pierre-Joseph Proudhon, “a propriedade é um roubo”. Nada mais distinto.

A Argentina potência

A afirmativa de que a Argentina foi a maior potência do mundo é uma dessas falácias repetidas pelos ideólogos de Milei. Na virada do século XIX para o XX, a Argentina era uma das maiores economias do mundo, atrás apenas dos grandes impérios europeus (britânico, alemão, francês e italiano) e dos Estados Unidos. Foi, sem dúvida, o auge daquele país, e Milei tenta convencer, agora, de que fará sua versão do “make Argentina great again”.

Depois da eliminação física dos indígenas dos pampas e dos opositores caudilhos, a Argentina passou a receber milhões de imigrantes de origem europeia, que alteraram a composição étnica do país, colocando-se em prática o que Alberdi e outros liberais da época preconizavam, que “governar é povoar”. Nessa lógica, o país de 1,8 milhão de habitantes de 1869 passou a contar com 8 milhões em 1914, sendo a nação latino-americana que mais recebeu imigrantes de origem europeia.

Após a recepção dos imigrantes (que não tiveram acesso à pequena propriedade, como ocorreu nos Estados Unidos), a Argentina alcançou um crescimento econômico impressionante ao se inserir como um caso exemplar na divisão internacional do trabalho. O país se tornou exportador de bens primários agrícolas e pecuários (trigo, lã, carne, couro) e conseguiu ser o maior receptor de capitais britânicos fora do Império, com os quais financiou importantes obras de infraestrutura urbana, portuária e de transportes, símbolos até hoje do ápice econômico argentino.

Quando Milei fala sobre voltar a ser a grande potência, refere-se aos símbolos daquele período nostalgicamente lembrado por muitos argentinos: os bulevares afrancesados de Buenos Aires, seus parques, as imponentes estações ferroviárias, o Puerto Madero, tão apreciado pelos brasileiros, e o impressionante Palácio do Congresso, que remete à arquitetura do Capitólio dos Estados Unidos.

O que ele deixou de comentar foi que tal crescimento econômico ocorreu por meio de uma lógica de dependência e conexão às estruturas do Império Britânico. A Argentina recebia os capitais, exportava os produtos primários e crescia enquanto o Império se expandia e era, este sim, a maior potência do planeta. Quando o Império Britânico atingiu seu ápice e suas crises se iniciaram com a Primeira Guerra Mundial, a Argentina sentiu o baque antes das colônias britânicas. Quando o Império ruiu, ao longo da Segunda Guerra Mundial, nunca mais a Argentina se reergueu. 

A visão idealizada do passado argentino por Milei e muitos de seus simpatizantes é a de um país que cresceu economicamente. De fato, o país cresceu, mas de forma subalterna nos circuitos econômicos britânicos após a vitória sobre opositores políticos e a ocupação das terras nos pampas, liberadas depois do genocídio indígena. Quando o Império Britânico ruiu, o modelo de inserção internacional liberal argentino ruiu junto.

O que se pretende ao voltar a esse passado? Ele explicitamente ignora, em sua Argentina idealizada, as reivindicações sociais e as lutas políticas dos próprios imigrantes, tão combatidos pelas elites tradicionais argentinas. Ele também defende uma reinserção subalterna ao que agora se chama de cadeias globais de produção, fazendo crer que produzirá o mesmo extraordinário efeito econômico de um momento muito específico e violento da história. As conjunturas doméstica e internacional de 130 anos atrás não voltam.

O que sempre está de volta é esse discurso da Argentina excepcional, diferente dos países vizinhos: um país de brancos, um país liberal, um país que se afasta dos discursos de solidariedade continental (que Alberdi defendia) e que não se vê como parte da América Latina. Essa ideia não é exclusiva de Milei e de seus simpatizantes, mas está arraigada em parte considerável das elites econômicas, políticas e intelectuais do país vizinho, e agora encontrou um novo porta-voz estridente.

 

*Gabriel Passetti é professor de História das Relações Internacionais do Instituto de Estudos Estratégicos da UFF, coordenador do Laboratório de História da Política Internacional Sul-Americana (Lahpis) e coorganizador do livro Nas teias da diplomacia: percursos e agentes da política externa brasileira no século XIX (Mauad, 2022).

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Compartilhar :
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.