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Com conflito na Etiópia, milhares fogem a pé para Sudão no meio da pandemia: "É desesperador"

O conflito entre o exército da Etiópia e rebeldes do norte do país começou há seis semanas, após a revolta das autoridades locais contra a suspensão das eleições. Desde então, mais de 50 mil etíopes atravessaram a fronteira com o Sudão para fugir do combate armado. A onda de refugiados preocupa a comunidade internacional, que vê milhares de refugiados chegando a um país com a economia fragilizada em meio a uma pandemia.

A família de Mulu Asafar vive em uma casa de apenas um cômodo e de menos de 15 metros quadrados.
A família de Mulu Asafar vive em uma casa de apenas um cômodo e de menos de 15 metros quadrados. © Vinícius Assis
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De Hamdayet, Vinícius Assis, correspondente da RFI 

“Mulheres e crianças chegam ao Sudão com histórias perturbadoras de violência, privação e abuso. Muitos não conseguiram sair”, contou o subsecretário-geral para Assuntos Humanitários e Coordenador de Ajuda de Emergência das Nações Unidas, Mark Lowcock. O representante da ONU diz que o número de civis precisando de ajuda tem aumentado.

No início desta semana a comunicação por telefone foi reestabelecida em Mekelle, a capital da região etíope de Tigré. Moradores contaram que há pouca água corrente e estão preocupados com o restrito acesso à comida, já que os preços dos alimentos estão muito altos.

Com medo dos ataques recentes, tentando sobreviver a qualquer custo, mais de 51 mil etíopes fugiram para o Sudão desde o início de novembro. Muitos caminharam por dias até cruzar a fronteira e chegar à cidade sudanesa de Hamdayet, onde a reportagem esteve. A Etiópia está restringindo o acesso de jornalistas estrangeiros ao país.

O número de novos refugiados atravessando a fronteira diariamente tem diminuído, passou de milhares no início de novembro para centenas nas últimas semanas. Mas todo dia tem novos etíopes chegando. Atualmente as crianças somam 31%, sendo que muitas delas se perderam dos pais na fuga. A maioria (64%) dos refugiados têm entre 18 e 59 anos, e 5% deles são idosos.

Faz parte deste grupo Kirosgavra Cheristos, um produtor rural de 60 anos que cruzou a fronteira caminhando com a família. Para conter o fluxo de pessoas deixando o país desta forma, o governo da Etiópia mandou tropas do exército para a fronteira. Milicianos também estão aterrorizando a região. “Soldados nos abordaram, levaram o pouco de dinheiro que eu tinha no bolso e nos deixaram vir”, contou o produtor rural, desesperado.

Todos os novos refugiados são cadastrados pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur). De acordo com o último relatório da Acnur, nesta quinta-feira foram 184 novos refugiados etíopes cadastrados no Sudão. O maior número foi registrado no dia 10 do mês passado, quando quase 7 mil refugiados chegaram ao país somente naquele dia.

O Sudão tem sido elogiado pela ONU por acolher os etíopes em fuga, mas há uma preocupação internacional com o país que está com economia fragilizada e enfrenta escassez de produtos essenciais, como pão e gasolina.

Campos de refugiados no Sudão

Em Hamdayet, por onde muitos refugiados têm chegado, tem sido feita uma espécie de triagem. Dali os etíopes são encaminhados para nove campos preparados para recebê-los. Um deles é o Village 8, onde estavam mais de 15 mil refugiados quando a reportagem chegou. No local, há pequenas casas de alvenaria, muitas sem telhado. Foram usadas para abrigar vítimas de uma enchente no Sudão, anos atrás.

O local é bem seco e empoeirado. O atendimento médico é precário. Um dia antes havia chegado ao campo um jovem etíope baleado na perna. “Foram soldados da FANO”, contou à RFI sobre uma maca, sangrando. FANO é uma milícia ligada ao primeiro-ministro etíope. A vítima esperava a ambulância da Médicos Sem Fronteiras para levá-lo a um hospital mais bem equipado, na cidade de Gadaref, a no mínimo cinco horas de viagem.

Em uma dessas casas de apenas um cômodo e de menos de 15 metros quadrados está a família de Mulu Asafar, dona de casa que há semanas não tinha como tomar banho. Usava a mesma roupa desde que chegou. Preparava em um fogão improvisado com pedras e gravetos o almoço do marido, o filho e um menino que se perdeu dos pais e acabou se tornando parte da família dela também. “Dormimos olhando para o céu. Não tem telhado aqui e não sabemos até quando teremos comida. É muito triste e desesperador”, disse. O marido trabalhava como vigia em uma propriedade rural no norte da Etiópia e hoje não consegue ver como será o futuro da família. Disse que enquanto Abiy Ahmed estiver no poder ele não volta para a Etiópia.

Entenda o conflito

O primeiro-ministro da Etiópia, Abiy Ahmed, suspendeu as eleições gerais no país por conta da pandemia do novo coronavírus. A oposição viu a atitude como uma manobra estratégica para que ele fique mais tempo no poder. Em setembro, autoridades da região semi-autônoma do Tigré, no norte do país, decidiram realizar por conta própria a eleição regional, o que deixou o primeiro-ministro furioso.

Abiy Ahmed considerou a eleição ilegal e lançou uma ofensiva militar contra a região norte do país depois de dizer que uma unidade militar tinha sido atacada por forças de segurança do Tigré, região que é governada pela Frente de Libertação do Povo Tigré. Este partido teve muita influência na política nacional durante décadas, só que perdeu força quando Abiy Ahmed chegou ao poder, em 2018.

Vale lembrar que Tigré também é o nome de um dos mais de 80 grupos étnicos da Etiópia, que representa menos de 10% da população total do país (de mais de 100 milhões de habitantes). Abiy Ahmed é da etnia Oromo.

O primeiro-ministro etíope venceu o prêmio Nobel da Paz no ano passado por ter colocado um fim na guerra entre a Etiópía e a Eritéia, depois de 20 anos de conflito. Principalmente por conta do prêmio ele vem sendo pressionado pela comunidade internacional para resolver o quanto antes a questão no Tigré de forma pacífica.

Ajuda humanitária

A ONU liberou US$ 35,6 milhões para serem usados na crise humanitária que cresce na Etiópia por conta do conflito no norte do país entre o exército etíope e rebeldes locais. O dinheiro deverá ser usado para a compra de água potável, itens de higiene, suprimentos médicos e de proteção para civis prejudicados pelo confronto.

Do outro lado, a comunidade internacional pressiona para que a Etiópia resolva o conflito. A União Europeia suspendeu 90 milhões de euros em ajuda para o país até que as exigências do bloco sejam atendidas pelo governo etíope. O objetivo é criar um espaço político para avaliar a situação atual e cobrar uma resposta, basicamente, ligada ao acesso humanitário, acesso aos meios de comunicação e o fim da violência na região em conflito.

A União Europeia também pressiona por investigações sobre as violações dos direitos humanos nas últimas semanas e a permissão para que jornalistas visitem a região. O valor total que o bloco europeu envia para ajudar o desenvolvimento da Etiópia é de cerca de 214 milhões de euros por ano, de acordo com o site da UE.

Senadores norte-americanos também defenderam que os Estados Unidos apliquem sanções contra a Etiópia por conta do conflito que, estima-se, já deixou milhares de mortos desde o mês passado.

O subsecretário-geral para Assuntos Humanitários e Coordenador de Ajuda de Emergência das Nações Unidas reconheceu que conflitos como este são difíceis de parar quando saem do controle. “As vidas que eles extinguem não podem ser recuperadas e as queixas que eles criam são duradouras. No momento, as crianças estão sem ajuda. Precisamos de acesso irrestrito agora”, disse Mark Lowcock.

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