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“Lutas feministas na Europa têm muito a aprender com as brasileiras”, diz socióloga francesa

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Para as feministas, o Dia Internacional da Mulher é uma data de luta e não de celebração. Heloïse Prévost, socióloga da Universidade de Toulouse, no sudoeste da França, analisa que os desafios deste 8 de março de 2023 são múltiplos devido “ao aumento da opressão racista e sexista”, no Brasil e em outros países do mundo. Segundo ela, “as lutas feministas na França e na Europa têm muito a aprender com a organização e as lutas das mulheres brasileiras”.

Marche contre la violence faite aux femmes, le samedi 23 novembre, à Paris.
Marche contre la violence faite aux femmes, le samedi 23 novembre, à Paris. REUTERS/Christian Hartmann
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Heloïse Prévost é especialista em estudos de gênero, feminismo e agroecologia. Ela realizou várias de suas pesquisas no Nordeste brasileiro e codirigiu um filme participativo com trabalhadoras rurais, o documentário “Mulheres Rurais em Movimento”.

Héloïse Prévost, socióloga da Universidade de Toulouse.
Héloïse Prévost, socióloga da Universidade de Toulouse. © Arquivo pessoal

Leia a entrevista completa

RFI: 8 de março é um símbolo da luta pelos direitos das mulheres. Neste ano de 2023, quais são os desafios mais urgentes?

Héloïse Prévost: Nesse ano de 2023, os desafios são múltiplos. O Brasil viveu um período de necropolítica, de retrocesso dos direitos, de aumento e reafirmação do conservadorismo e do autoritarismo depois do golpe contra Dilma Rousseff. A violência contra as mulheres é muito importante no país. No Brasil, acontece um estupro a cada 11 minutos e 3 mulheres são assassinadas por dia. As principais vítimas são mulheres, negras ou pardas, precárias. Os estudos mostram que o perfil mais comum dos agressores é de homens brancos de 35 a 39 anos. Com o governo Bolsonaro houve um reforço do ‘pacto de masculinidade violenta’ e da cultura do estupro.

A opressão racista é ligada à opressão sexista. Esta situação política e social não é exclusiva do Brasil. Ela pode ser encontrada na Europa, nos Estados Unidos, e em outros países latino-americanos. A Nalu Faria, militante da Sempreviva Organização Feminista (SOF), disse em uma coluna no Brasil de Fato que o 8 de março é dia de radicalizar a esperança no Brasil. Acho muito interessante como proposta. Além da reconstrução de um espaço de democracia, os desafios são de superar esse reforço das violências.

O tema deste Dia Internacional da Mulher escolhido pela ONU é “Por um mundo digital inclusivo: inovação e tecnologia para a igualdade de gênero”. É um tema pertinente?

Confesso ter dúvidas. Com esses ataques aos direitos fundamentais das mulheres, das pessoas LGBTQI+, da população negra e dos povos originários, com esses avanços do conservadorismo e do autoritarismo, nos últimos anos em várias partes do mundo, eu teria imaginado outras prioridades. Claro que o acesso igualitário às tecnologias é uma pauta, mas essa pauta deveria também ser considerada com um olhar crítico.

A urgência social, climática, ambiental, exige que pensemos no contexto. De qual inovação estamos falando? O campo, as comunidades rurais, os movimentos populares têm muitas inovações e saberes ancestrais fundamentais para construir um mundo sustentável. Os estudos feministas mostram que o solucionismo tecnológico é um fator e um motor de privilégio masculino e de classe. É também uma ferramenta cômoda de modernização capitalista pintada de verde, que não critica o modelo explorador da natureza e das pessoas, mas que permite continuar tudo como antes com boa consciência ecológica.

Você trabalha principalmente com agroecologia e feminismo. Fez sua tese e várias pesquisas, inclusive um filme participativo, com trabalhadoras rurais do Nordeste brasileiro. Essas mulheres, e o trabalho que elas desenvolvem, são ainda mais invisibilizadas do que as mulheres dos grandes centros urbanos?

No Nordeste, eu trabalhei com as militantes do Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais (MMTR). Elas são estigmatizadas por serem mulheres, por serem negras, por serem do Nordeste, por desenvolverem atividades ligadas ao mundo rural, à terra. Elas são invisibilizadas enquanto sujeitos políticos. Também, o trabalho delas é invisibilizado, seja o trabalho de cuidado com as pessoas da família, seja o trabalho comunitário, o trabalho de cuidado ambiental (cuidar e proteger a natureza), mas também todo o trabalho produtivo, enquanto agricultora, que ainda hoje pode ser chamado de ajuda ao marido. Contudo, esse trabalho é fundamental. Nos quintais, nas roças, nas comunidades, elas conseguem produzir uma diversidade ecossistêmica importante, e construir a soberania alimentar.

De modo geral, o trabalho de cuidado nas casas, nas profissões de cuidadoras, e de cuidado à natureza é quase exclusivamente atribuído socialmente às mulheres e grupos minorizados, tanto nas cidades quanto no campo. É um trabalho invisível, em grande parte gratuito, contínuo, desvalorizado. No entanto, é um trabalho fundamental e vital de sustento da vida. Sem esse trabalho, o nosso mundo não existiria; sem o trabalho de cuidado e de reprodução, o capitalismo não existiria.

A militância é fundamental para o empoderamento dessas mulheres?

A militância pode ser uma ferramenta importante do empoderamento das mulheres ou das pessoas oprimidas, com certeza. No nosso filme, Mulheres Rurais em Movimento, as mulheres do MMTR explicam como o movimento mudou a vida delas ao trazer uma tomada de consciência de seus direitos e da divisão das tarefas nas famílias, viagens, discussões, formação e a não ter medo.

Mas acho que os espaços não-mistos podem proporcionar às pessoas oprimidas uma ferramenta de empoderamento. São espaços para poder discutir sobre as violências vividas, questões pessoais e a entender que o que elas vivem não é uma questão pessoal, mas sim um efeito da sociedade que muitas vivem e a se conscientizar sobre as desigualdades de gênero, de classe, de raça. Nesses espaços, elas podem se organizar, criar solidariedade e redes de cuidado.

Um conceito importante que você utiliza e desenvolve é o feminismo decolonial. Poderia explicar?

As abordagens decoloniais são pensamentos desenvolvidos na América Latina, em conexão com a colonização. No centro dessas reflexões está a modernidade - entendida como uma característica central do poder capitalista global.  A colonialidade, que vai além do período da colonização, é um conceito que reflete as origens e as consequências da colonização que estão ativas ainda hoje nos mecanismos sociopolíticos e nos jogos de poder.

Por feminismo decolonial, estamos falando de muitos textos, reflexões, experiências e saberes que permitem entender as imbricações das opressões. As feministas decoloniais vão analisar a colonialidade mas também como esta imbricada com o patriarcado, como os dois funcionam juntos. Também, o feminismo decolonial se desenvolve nas lutas cotidianas e nos movimentos sociais de base, nos movimentos feministas, antirracistas, anti-extrativistas.

Como feministas decoloniais podemos citar Maria Lugones, que desenvolveu o conceito de colonialidade de gênero, a Ochy Curiel e a Yuderkys Espinosa Miñoso. Mas também grupos minorizados, como mulheres quilombolas que lutam contra à criação de um parque natural no território delas, contra a mercantilização da natureza e por seus direitos, podem praticar um feminismo decolonial.

Outro conceito importante é o de corpo-território?

O conceito de corpo-território é muito importante para entender os impactos socio-ambientais do modelo social e societal em que vivemos. Esse conceito permite entender como ataques a um território, como a mineração e a construção de grandes infraestruturas, como barragens, estão ligados a ataques ao corpo das pessoas, de modo diferenciado segundo o gênero

Lorena Cabnal, mulher Maya Kekchi e Xinca, feminista comunitária, faz parte de uma associação de mulheres que desenvolveu o slogan: ‘defesa do corpo-território e do território-terra’. Para elas, é necessário defender o território-corpo diante das várias formas específicas de violência que experimentam como mulheres: violência sexual e feminicídio. Diante do desenvolvimento da indústria de mineração e do extrativismo, nasceu a necessidade também de ‘recuperar e defender o território-Terra’. Elas acham que não adianta defender um território se nesse território se encontram mulheres e crianças violentadas. Lorena Cabnal chama isso de ‘incoerência cosmogônica’.

Eu usei esse conceito para explicar como existe não só a continuidade da violência histórica, colonial e patriarcal, mas também um ‘continuum’ da violência de gênero que vai da violência conjugal à violência política agrocapitalista. Dei como exemplo o caso de um marido que não aceita que sua esposa se envolva politicamente no movimento agroecológico e cultive a terra de modo agroecológico. Então, ele queima o quintal da esposa. Esse gesto vai destruir a terra e ameaçar a sobrevivência da família. Queimando a produção dedicada à alimentação, esse gesto nega a mulher como trabalhadora rural. Ele também ataca o projeto político agroecológico que é um projeto social, ambiental e político.  Atacando o território, ataca o corpo social e fisiológico da mulher.

Outro exemplo, o feminicídio político da Maria Margarida Alves ou de mulheres militantes ecológicas. Esses feminicídios visam atacar as resistências em contexto de conflito ambientais, destruir quem defende o território, mas também tem um caráter particular por atacar mulheres. É um modo de punir a transgressão das mulheres do papel de gênero atribuído socialmente a elas, do lugar atribuído às mulheres nas sociedades. Quando elas viram sujeito político, é uma transgressão de gênero. Ao mesmo tempo, esse feminicídio manda uma mensagem de terror à comunidade rural inteira.

Feminismo e agroecologia seriam os principais fundamentos da luta das mulheres nos dias de hoje?

Não só das mulheres, mas da sociedade inteira. O feminismo agroecológico, ou os vários tipos de ecofeminimo, os feminismos decoloniais, são os movimentos mais amplos e completos que existem no pensar a globalidade das problemáticas social e ambiental.  A ecologia e o ambientalismo são apenas subgrupos. A ecologia apresenta uma reflexão parcial comparada aos ecofeminismos. O feminismo agroecológico, como os ecofeminismos, são movimentos que defendem e constroem um projeto social global baseado no cuidado da vida social e ambiental.

Diante do modelo capitalista baseado na ideia de homo economicus, elas defendem um projeto que coloca a vida no centro da questão. As desigualdades sociais, as opressões, são consideradas e combatidas com um modo de viver que defende o território e a natureza. Nesse sentido, é um projeto global, com alternativas e experiências muito concretas de como trabalhar de modo sustentável a terra, protegendo o território, as águas, os animais e as plantas; de como construir uma divisão justa do trabalho, combater a violência e politizar esse modelo político.

Como está a luta das mulheres na França e na Europa?

As lutas feministas na França e na Europa têm muito a aprender com a organização e as lutas das mulheres brasileiras, como a luta está conceitualizada e a prática concretizada na aprendizagem. As mulheres devem pensar juntas em como resistir e enfrentar as desigualdades sociais, refletindo sobre o modelo de sociedade que querem construir. Todos esses desafios, a gente ainda tem, aqui [na França], de aprender muito com as organizações de mulheres e as feministas da América Latina e do Brasil.

Para concluir, queria fazer um convite. Para entender mais e participar, vocês podem se informar sobre a próxima Marcha das Margaridas, que vai acontecer em agosto em Brasília. Podem ler as pautas da Marcha, escutar as análises e propostas elaboradas nessa ocasião, e… marchar!

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