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50 anos da Revolução dos Cravos: cientista político estuda oposição à ditadura portuguesa no Brasil

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O dia 25 de abril marca os 50 anos da Revolução dos Cravos, em Portugal, que resultou no fim da ditadura liderada por Antônio Salazar e que influenciou na independência de colônias portuguesas na África. Um aspecto menos abordado dessa história é a oposição ao governo português feita a partir do Brasil, onde muitos portugueses viveram exilados. Esse é o tema da pesquisa do professor e cientista social da Universidade Federal Fluminense (UFF) Douglas Mansur, entrevistado pela RFI Brasil.

O escritor Douglas da Silva
O escritor Douglas da Silva © Fotomontagem arquivo pessoal
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Maria Paula Carvalho, da RFI

RFI: Para fugir da ditadura de direita mais longa do século XX, que durou de 1926 a 1974, várias levas de portugueses foram para o Brasil, um dos países que mais recebeu imigrantes de Portugal, juntamente com a França e a Itália. Esses migrantes tiveram uma atuação importante contra o regime de Salazar e pela volta da democracia no seu país de origem. Como funcionavam estes centros de oposição à ditadura portuguesa no Brasil e que impacto eles tiveram?  

Douglas Mansur: Como você mencionou, a ditadura de Portugal foi a maior ditadura de direita do século XX. Ela começou em 1926, com o golpe militar de Salazar, e segue ao longo dos anos com o Estado Novo. Salazar fica no poder até o final dos anos 1960, quando pela idade não tem mais condições de governar e vem a falecer. O regime dura, ainda, até 1974, nos últimos anos, tendo o Marcelo Caetano à frente. E durante todo esse período, nós tivemos uma oposição interna em Portugal, clandestina e alvo de prisões, de violações de direitos humanos etc., de formas de expulsão. Por isso nós tivemos um número significativo de exilados. O exílio no Brasil teve um papel fundamental. Até 1961, o Brasil era o país com maior número de imigrantes portugueses.   

RFI: Uma primeira leva de exilados partiu em 1927, segundo a sua pesquisa, com um perfil mais liberal e republicano e fundaram associações no Brasil, onde passaram a publicar jornais. Como foi essa atividade?

Douglas Mansur: Uma primeira leva, como você mencionou, veio logo em 1927. Eram liberais republicanos e fundaram no Brasil, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, centros republicanos, além de jornais. O "Portugal Republicano" era um desses jornais. Mas essas associações foram fechadas com o nacionalismo de Vargas e com o início da Segunda Guerra Mundial. Então, nós temos um período de praticamente uma década em que há muito pouca oposição à ditadura portuguesa. O salazarismo, inclusive, cresce entre as colônias e entre as associações de imigrantes.  

RFI: Já depois da Segunda Guerra, a partir de 1950, começaram a chegar ao Brasil portugueses mais jovens, com ideais socialistas e comunistas, para fortalecer essa oposição. O que diferencia esse segundo grupo do primeiro e como eles atuavam? 

Douglas Mansur: Essa oposição é retomada em meados dos anos 1950, aí já mesclando essa geração mais antiga de liberais republicanos com uma geração nova, que vive os anos da guerra em Portugal, com uma predominância de comunistas, mas também socialistas, mais tarde de católicos e até de dissidentes do regime.  

RFI: Com a queda do fascismo e do nazismo, havia uma expectativa pelo fim das ditaduras na Espanha e em Portugal, o que não aconteceu. Mais do que nunca, esses portugueses no exílio se lançaram na luta pela democracia, e uma das suas armas era a publicação de um jornal. Esse processo também contou com a participação de brasileiros?  

Douglas Mansur: Esse pessoal resolve fundar, em meados dos anos 1950, um órgão de imprensa: o "Portugal Democrático". Este jornal vai durar até 1975, portanto até depois do fim da ditadura, e vai ser o único órgão de imprensa em língua portuguesa, que trata de Portugal no exílio e que não vai sofrer censura. E ele vai conseguir agregar não só grande parte dessa oposição, mas também ter uma relação com intelectuais, com universitários, com sindicalistas brasileiros, com a sociedade civil brasileira de modo geral.  

RFI: Logo em seguida, eles enfrentaram, também, a ditadura militar no Brasil. Eles puderam continuar a questionar a ditadura portuguesa, quando vários meios de comunicação brasileiros e intelectuais eram censurados em casa? Eles podiam tratar de casos de tortura, abusos ou falar de anistia no seu país natal, quando práticas semelhantes ocorriam no país de exílio?  

Doulglas Mansur: Quando o jornal foi criado, o Brasil vivia uma democracia, ainda que relativa e questionável em muitos aspectos, mas isso possibilitou a ampliação significativa e a vinda para o exílio de lideranças políticas portuguesas do campo da oposição. De fato, em 1964, o jornal lança uma edição teste, logo após o golpe de 1964, em que usa vários jargões da esquerda, jargões marxistas, para testar se ele ia ou não ser censurado. E o que aconteceu foi que o diretor do jornal foi chamado e avisado de que o jornal poderia continuar a circular, desde que não tocassem em assuntos brasileiros. Apesar disso, ele foi importante porque circulava em São Paulo e em mais de 20 cidades do Brasil e, depois, em mais de 20 países. Ele tratava de temas como violação de direitos humanos, tortura, anistia, democracia, temas que estavam censurados no Brasil e que, de alguma forma, eram tratados, só que espelhados em outra ditadura. E, curiosamente, o governo da ditadura civil-militar brasileira também era simpatizante da causa anticolonial, de libertação dos povos das então colônias africanas, que começaram um conflito com Portugal, a partir de 1961, para se tornarem independentes. E o jornal tratou bastante disso e se aproximou desses movimentos, o que fez com que ele tivesse longevidade e não passasse por censura.   

Evento em Paris

RFI: Tudo isso está no livro que você publicou em 2006, chamado "A oposição ao Estado Novo no exílio brasileiro", que está na sua terceira edição. Por causa desse trabalho, você foi convidado para tratar do tema em uma conferência que acontece aqui em Paris, neste 26 de abril, um evento sobre os 60 anos da ditadura brasileira, na Escola de Altos estudos em Ciências Sociais da França (École des Hautes Études en Sciences Scociales – EHESS), do qual você participa por videoconferência para falar dessas redes de enfrentamento da ditadura em outros países. Conte-nos sobre a sua participação?  

Douglas Mansur: Trata-se de um evento sobre os 60 anos da ditadura no Brasil e eu vou abordar essas redes que foram importantes para a inserção dos exilados portugueses no Brasil. É importante dizer que já havia revistas no Brasil que haviam aproximado os modernistas brasileiros aos modernistas portugueses. Então, nas páginas do "Portugal Democrático", você podia encontrar manifestos em prol da anistia assinados por Vinícius de Moraes, artigos do Rubem Braga, de Carlos Dummond de Andrade, que contribuíam para o jornal. O sociólogo brasileiro Florestan Fernandes também ajudou a organizar congressos no Brasil em prol da anistia de presos políticos da Espanha e de Portugal. E depois, com o 25 de abril de 1974, acontece o movimento inverso. Uma parte desses portugueses volta para Portugal e passa a lutar e a apoiar uma oposição à ditadura brasileira. Alguns brasileiros vão para Portugal e para Moçambique, que é uma dessas ex-colônias, e que se tornam independentes. Então, de alguma forma, você tem uma vivência em duas ditaduras e a oposição a duas ditaduras. Justamente essa vivência, de um enfrentamento de um exílio no Brasil e depois de uma segunda ditadura no Brasil, e em seguida o movimento inverso, de receber e acolher brasileiros, é disso que iremos tratar. 

Crescimento da extrema direita  

RFI: O que pode ser dito sobre a relação atual entre o Brasil e Portugal? Em que contexto se inserem esses 50 anos da Revolução dos Cravos e os 60 da ditadura brasileira? 

Douglas Mansur: Brasil e Portugal têm uma relação histórica, apesar da imigração de portugueses no Brasil ter diminuído significativamente e de Portugal ter adentrado na União Europeia em 1986 e ter se voltado muito mais para este espaço. Porém, os dois países vivem dilemas contemporâneos em torno da democracia. É impressionante ver como os temas são recorrentes, inclusive os lemas, as frases. O Salazar tinha como lema "Deus, pátria e família", por exemplo. Eu vejo muito mais proximidade entre o salazarismo e uma extrema direita brasileira do que propriamente com o fascismo histórico italiano, que era expansionista, que era secular, não era ligado à religião. A expressão de extrema direita do Brasil, e que até agora também tendo espaço em Portugal, tem muito mais relação com o salazarismo histórico, embora tenha alguns elementos de fascismo do que com propriamente o fascismo e o nazismo. 

RFI: As últimas eleições em Portugal demonstram a ascensão da “nova direita” representada pelo partido Chega.

Douglas Mansur: Os dois países estão experimentando testes nas suas democracias e a ascensão de uma extrema direita. Em Portugal, pela primeira vez desde o 25 de abril de 1974, você tem uma votação expressiva de extrema direita. Até onde vai o pluralismo, até onde a democracia pode tolerar de modo que não seja aniquilada? E são debates que já estavam no antigo jornal "Portugal Democrático", não com essa linguagem. Mas são debates que a gente, olhando para a história, vê que tiveram a ver com a desinformação. Não é o único fator, mas foi um fator importante para a ascensão da extrema direita, do nazifascismo e de outros regimes de extrema direita na Europa. Há outras razões, como a questão econômica, estrutural e estamos vendo um período pós-industrial no mundo, isso gera muito desemprego e novos riscos sociais. E então alguns imaginam outras alternativas à democracia. Há uma ascensão de extrema direita em diversos lugares do mundo: na Hungria, no Brasil e até nos Estados Unidos. Voltando à questão histórica, eu vejo muita relação das fake news com toda a propaganda falsa que o nazismo fazia sobre o perigo do estrangeiro, particularmente do polonês, para justificar a invasão da Polônia e começar ali uma expansão pela Europa. Tudo isso passava no cinema, passava no rádio. Isso fez com que Hitler fosse eleito e levou a uma exacerbação do nacionalismo. A gente está no meio desse debate agora.  

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