Pandemia e violência fazem do ensino à distância uma alternativa para os estudantes do Haiti
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A instabilidade política do Haiti, com a oposição contestando a legitimidade do presidente Jovenel Moise, agrava uma situação dramática, em um contexto de pandemia e crise social ligada ao aumento da violência e à insegurança. Neste cenário difícil, o país tem recorrido ao ensino à distância para superar inúmeros desafios e garantir à população acesso à educação.
O Haiti vive nova tensão política e social desde o início de fevereiro, mas o clima de insatisfação não é recente, de acordo com o professor brasileiro de Literatura Saulo Neiva, atual representante da Agência Universitária para a Francofonia (AUF) para o Caribe, que está nesse momento em Porto Príncipe.
“A crise política começou em 2018 com vários protestos e manifestações, com problemas relacionados às questões de segurança, uma certa carestia, penúria de combustível. Foram protestos muito violentos e desde aquele período de protestos era aconselhável não sair de casa”, relata Saulo.
“As tensões políticas se agravaram em 2019 e, no ano seguinte, houve mais aumento de insegurança com a realização de muitos sequestros”, lembra. Segundo ele, a situação ficou menos turbulenta socialmente depois da chegada da pandemia, no ano passado, quando as medidas de restrições sanitárias resultaram na diminuição do número de protestos.
A nova crise política voltou com mais força em fevereiro deste ano, com as manobras da oposição de contestar a legitimidade do mandato do presidente Jovenel Moise. O chefe de Estado afirma que só deve deixar o cargo em fevereiro de 2022, ao término de cinco anos de mandato, como prevê a Constituição. Já seus opositores afirmam que seu governo terminou no dia 7 de fevereiro. A ONU já defendeu a realização de um calendário eleitoral que prevê um referendo constitucional em 25 de abril e eleições presidencial e legislativa no dia 19 de setembro.
“Desde fevereiro houve novos protestos violentos e a população carente é a que mais sofre com essa situação porque há grupos políticos com a sociedade civil participando desses protestos, como também gangues que aterrorizam a população. As pessoas mais vulneráveis são as que mais sofrem”, afirma Saulo.
Educação, um dos setores mais atingidos
Entre os setores mais atingidos por esse cenário turbulento está o da educação. As diversas crises ligadas à insegurança, pandemia e política resultaram na saída de muitas crianças e jovens das escolas e universidades.
“O setor da educação é bastante atingido porque sofreu com o período em que havia protestos políticos, contra o governo atual, protestos contra a insegurança e também todo o período da pandemia. Então são períodos em que as aulas são suspensas e durante meses e meses as crianças não podem ir às escolas e, assim como as universidades, têm que encontrar soluções de urgência como aconteceu um pouco no mundo todo”, diz Saulo.
No entanto, o professor lembra que para o Haiti, os desafios são ainda maiores porque envolvem também a falta de infraestrutura e uma rede elétrica precária. “É um setor debilitado no Haiti porque não há uma eletrificação completa no país. Professores e estudantes não têm energia elétrica 24 horas por dia em casa. Então para todo o acesso às plataformas de ensino temos que encontrar outras soluções, como por exemplo, usar WhatsApp como apoio para o ensino à distância. Pensar em ensino que se faz de maneira assíncrona, mais do que de maneira síncrona, ou seja, o aluno recebe o material em casa e quando ele tem corrente elétrica, pode estudar. Tudo que é sincronizado é difícil aqui no Haiti. É preciso encontrar outras soluções para que a educação avance”, conta.
Segundo Saulo, as crises sucessivas pelas quais o país atravessa tem um outro reflexo muito preocupante: o aumento da desigualdade no país mais pobre das Américas. E o setor da educação não escapa a esse fenômeno.
“As escolas privadas, mais ricas, desde o início da suspensão das aulas no começo de 2019 por questões de segurança, acompanharam as famílias enviando os cursos por meio dos recursos de ensino à distância. Enquanto isso, nas escolas (públicas), que atendem as famílias mais modestas, desfavorecidas, os alunos ficaram defasados e as famílias tiveram que encontrar soluções (alternativas)”, conta.
Formação de professores e compra de tablets
A situação, segundo Saulo Neiva, também se reproduziu no ensino superior, área de atuação direta da Agência Universitária da Francofonia, entidade que atua na cooperação e fomento do ensino superior e da pesquisa do universo francófono. A educação à distância nem sempre pode ser oferecida a estudantes, especialmente da rede pública. “As universidades públicas em alguns casos estavam preparadas, mas em outros não foi possível. As universidades privadas que têm um pouco mais de recursos e puderam acompanhar melhor os alunos, apesar da suspensão das aulas presenciais”, afirma.
Em resposta a uma situação considerada emergencial para contornar os efeitos das crises e das restrições sanitárias, a AUF concentrou em 2020 seus esforços no programa de apoio voltado para o ensino à distância e na transformação digital das universidades haitianas.
A Agência fez um programa de formação de mais de 200 professores nos países caribenhos para que eles pudessem entender, se adaptar e aplicar a pedagogia do ensino à distância. Para isso, propôs um sistema híbrido com classes presenciais e virtuais.
No Haiti, além da formação de professores, a instituição orientou as instituições de ensino superior na criação de plataformas de ensino à distância, além de financiar a compra de tablets para responder ao problema urgente da falta de computadores de alunos mais carentes, que além de falta de material não têm acesso à energia em tempo integral.
“O tablet é uma solução que vem apoiar a pedagogia do ensino à distância em uma situação como a que vive o Haiti. A partir de 2021 esse tipo de programa vai continuar e vai ser desenvolvido. Mais professores vão ser formados e mais universidades vão ser equipadas. O nosso objetivo é que o recurso do ensino à distância deixe de ser feito por causa de uma pressão das crises sanitárias, que podem voltar, mas que haja uma maneira de transformar a pedagogia apoiada nesses recursos como uma maneira a mais de ensinar e desenvolver a universidade”, conclui Saulo.
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