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Reportagem

Como tirar alguém da bolha do extremismo político? Programas de combate à radicalização dão pistas

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“Perdi meu pai para o bolsonarismo”. “Passei de orgulho da família com doutorado e virei a ‘comunista safada doutrinadora’”. “Eu não aceito. Eu vou morrer! Nós vamos morrer! Mas não vamos entregar [o país] aos comunistas e acabou!”. Se há 20 anos, a palavra radicalização era tida como sinônimo de terrorismo islâmico, agora discursos de ódio, contra direitos humanos e apelos antidemocráticos podem ser ouvidos diariamente nas ruas e em vídeos difundidos em grupos de mensagem.

Os apoiadores do presidente brasileiro Jair Bolsonaro participam de um protesto para pedir intervenção federal em frente à sede do Exército em Brasília, em 2 de novembro de 2022.
Os apoiadores do presidente brasileiro Jair Bolsonaro participam de um protesto para pedir intervenção federal em frente à sede do Exército em Brasília, em 2 de novembro de 2022. AFP - SERGIO LIMA
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Cristiane Capuchinho, da RFI

“O que temos hoje não é mais a polarização [de opiniões], é a radicalização. São pessoas dentro de um sistema de crenças extremistas, no qual há uma rejeição forte do sistema de governo democrático e liberal. Há uma rejeição e uma vontade de romper com esse modelo de governo”, diz Michele Prado, autora do livro “Tempestade Ideológica – A alt-right e o populismo iliberal no Brasil”.

A receita dessa radicalização política não difere muito da já usada para a radicalização religiosa, como explica o especialista em prevenção do extremismo e professor da universidade Sciences Po, Elyamine Settoul.

“Às vezes são pessoas muito bem integradas na sociedade que começam a se interessar por uma ideologia e, pouco a pouco, se desconectam de suas famílias. É conhecido que incidentes da vida como a perda de um emprego, uma morte, um divórcio podem dar início a um caminho de radicalização. São uma abertura cognitiva para a busca de explicações paralelas a um problema”, assinala Settoul.

O pesquisador afirma que o extremismo político, sobretudo da ultradireita, tem ganhado força em diferentes partes do mundo, capturando variados perfis de pessoas, de jovens a idosos. A maior parte delas nunca chegará a cometer um ato de violência, mas o crescimento dessa comunidade radicalizada cria bases para que alguns indivíduos cheguem a ações extremas.

Apenas na França, seis atentados planejados por grupos de extrema direita foram desmantelados pela polícia antiterrorismo nos últimos cinco anos.

Manifestantes de extrema direita carregam faixa com dizeres: França, ame-a ou deixe-a .
Manifestantes de extrema direita carregam faixa com dizeres: França, ame-a ou deixe-a . REUTERS/Thomas Samson

Descolamento da realidade

Mas como alguém passa a defender posições extremas? O fenômeno, muitas vezes, pode ser resultado de uma radicalização digital. O contato com conteúdos extremistas acontece seja em redes sociais como o Facebook e o Instagram, nas quais os algoritmos trabalham para dar maior visibilidade a mensagens similares criando bolhas de informação, seja em aplicativos de mensagem como WhatsApp ou Telegram.

“A radicalização funciona como um túnel, você vai entrando e vai chegando cada vez mais longe. O primeiro passo é quando você começa a só consumir o conteúdo que está ali dentro daquela câmara de eco em que você está inserida. Então você não tem mais o contato com a voz dissonante, com o divergente. E o tempo inteiro você recebe confirmações [ainda que falsas] daquilo que os influenciadores disseminam”, descreve Michele Prado.

Uma vez dentro da engrenagem de grupos extremistas, os indivíduos entram em contato com um universo que mistura informações verdadeiras e falsas com o objetivo de construir narrativas simplistas para explicar problemas complexos, por vezes se descolando completamente da realidade.

Essa trajetória não acontece por acaso, ela depende da existência de uma grande quantidade de vozes influenciadoras para reafirmar a mensagem que se deseja passar e da supressão da possibilidade de divergência.

O pesquisador João Cézar de Castro Rocha, autor do livro “Guerra cultural e cultura do ódio” e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), chama a atenção para grupo digitais em que os indivíduos entram por vontade própria mas que ali acabam isoladas do mundo.

“As pessoas que voluntariamente se submetem à midiosfera extremista estabelecem um pacto: somente se informar na midiosfera extremista; nunca aceitar outra fonte. Então, não há mais possibilidade objetiva de se demonstrar que há erro nessas informações, porque todas as outras fontes de informação foram desqualificadas e vedadas”, explicou o professor, ao jornal Estado de Minas.

Muita escuta e conversa

Em países europeus como Alemanha, Reino Unido e França, programas de prevenção e combate à radicalização estão estabelecidos há anos. O foco na maioria dos casos é o jihadismo, mas cresce a importância dada ao combate da ultradireita.

Esses programas dão pistas de como o avanço do extremismo político deve ser tratado pela sociedade e pelo Estado. A rede de vigilância para o combate ao extremismo passa pela sensibilização de profissionais da educação, de serviços públicos e da comunidade para o tema. Os primeiros sinais podem ser notados na escola, por colegas de trabalho ou mesmo por familiares.

“A radicalização não é percebida pelas roupas ou coisas assim. É conversando com as pessoas que é possível constatar alguns indícios, por exemplo, essa pessoa se mostra longe da realidade, ela tem um discurso montado dentro de um sistema de pensamento fechado, não leva em consideração nada que venha de fora do seu universo, ela acredita em informações falsas e não aceita qualquer contestação, cita teorias de conspiração, esses são alguns sinais que podem indicar um certo nível de radicalização”, explica Settoul.

A partir da identificação do problema, os indivíduos devem receber o apoio adequado para que seja possível tirá-lo da bolha de radicalização. O especialista francês explica que o primeiro passo para tirar uma pessoa da radicalização é tentar entender de onde vem o extremismo.

“É preciso compreender a natureza da radicalização, se é um fator religioso, se é de ordem psiquiátrica, se é uma questão pessoal”, enumera. Para cada um dos casos, a forma de combater o extremismo deve ser diferente.

“Se o fundo é religioso, podemos colocar essa pessoa em contato com alguém de sua religião que possa ajudá-lo a desconstruir o discurso extremista partindo das mesmas bases de crença”, explica Settoul. “Se a radicalização é de ordem psiquiátrica, essa pessoa deve ser enviada a um terapeuta ou um psicólogo. Se for uma radicalização mais superficial, conversar com um mediador pode ser suficiente.”

Um homem segura uma placa que diz "SOS Forças Armadas" durante um protesto realizado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro contra o eleito Luiz Inácio Lula da Silva, que ganhou um terceiro mandato após o segundo turno das eleições presidenciais, na sede do Exército em Brasília, Brasil, em 7 de novembro de 2022.
Um homem segura uma placa que diz "SOS Forças Armadas" durante um protesto realizado por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro contra o eleito Luiz Inácio Lula da Silva, que ganhou um terceiro mandato após o segundo turno das eleições presidenciais, na sede do Exército em Brasília, Brasil, em 7 de novembro de 2022. REUTERS - UESLEI MARCELINO

Embate não adianta

O pesquisador francês salienta que indivíduos que fazem parte de comunidades radicalizadas na maior parte das vezes consideram seu grupo como vítima de ataques de outras comunidades. É este discurso que legitima a busca pela defesa própria a todo custo, mesmo pela violência.

Essa narrativa de grupo sob ataque é uma barreira na hora de tentar mostrar a uma pessoa exposta a conteúdos extremistas que, por exemplo, a informação é falsa ou radical. Treinadas para o embate, essas pessoas não se mostram abertas a ouvir o que vai contra o seu discurso, mesmo quando isso vem de alguém próximo como um parente ou amigo.

O embate provoca a reatância psicológica, diz Michele Prado, “essa pessoa tem a impressão que a liberdade dela de escolha está sendo retirada” quando suas crenças ou suas informações são colocadas em xeque.

Nesse caso, é preciso ouvir e tentar despertar na pessoa a dúvida para que ela possa por si só buscar informações que a levem para fora do espiral da desinformação. “Uma pessoa que acredita em teorias conspiratórias, não adianta chegar nela dizendo que aquilo é uma teoria conspiratória, é preciso chegar pelas beiradas e fazer ela por si mesma, com seu próprio espírito crítico, descobrir que aquilo ali é uma falácia”, exemplifica Prado.

Por isso a participação de pessoas que já estiveram em grupos extremistas na desradicalização de outros membros é de grande interesse. Settoul cita a participação de antigos neonazistas em rodas de conversa para a prevenção ou o combate ao extremismo em programas da Alemanha. Ao trocar experiências com alguém com quem compartilha pontos de vista, os indivíduos radicalizados estão mais propícios a colocar em perspectiva suas certezas.

Material de combate ao extremismo

O rápido avanço dos conteúdos extremistas no mundo tem levado à criação de diversos materiais para a prevenção contra o discurso de ódio.

No ano passado, a associação norte-americana Southern Poverty Law Center publicou uma série de guias gratuitos para orientar pais, educadores e profissionais de saúde a lidarem com a radicalização. O material está disponível no site da associação e tem uma versão em português, mas tem como centro os problemas de radicalização norte-americanos.

Finalizando um livro sobre a radicalização misógina, Michele Prado promete trabalhar no próximo ano em um material de combate ao extremismo voltado para o caso brasileiro.

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