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Reportagem

Eleição presidencial: franceses que vivem no Brasil conseguem união da esquerda impossível na França

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A campanha para a eleição presidencial na França também acontece no exterior. Principalmente em uma disputa tão acirrada quanto agora, o voto dos quase três milhões de franceses que moram fora do país e têm direito de votar para presidente pode ser decisivo. No Brasil, eles vão às urnas no primeiro turno no sábado, 9 de abril, um dia antes dos demais eleitores, que votam no domingo (10).

Piquenique no Aterro do Flamengo, em 27 de março, organizado pelo coletivo de esquerda Traits-d’Union, de franceses que vivem no Brasil.
Piquenique no Aterro do Flamengo, em 27 de março, organizado pelo coletivo de esquerda Traits-d’Union, de franceses que vivem no Brasil. © Traits-d’union
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Adriana Brandão, enviada especial da RFI ao Rio de Janeiro e Belo Horizonte

Duas semanas antes da votação, em um domingo de sol, um piquenique reuniu no Aterro do Flamengo eleitores franceses que vivem no Rio de Janeiro. O clima era de descontração. Cerca de 30 pessoas, que vieram em família, com filhos e pets, participaram do encontro organizado pelo coletivo de esquerda Traits-d’Union. Um evento parecido aconteceu em Belo Horizonte no último domingo (3).

O Traits-d'Union foi criado com o apoio de vários partidos de esquerda para indicar representantes dos franceses do Brasil e elegeu dois conselheiros em 2021 na segunda repartição consular, que inclui o Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Para esta eleição, o coletivo lançou um manifesto criticando o governo Macron que “aumentou as desigualdades e reduziu os fundamentos do Estado de Direito”, provocando “o desinteresse crescente dos cidadãos pela democracia, tanto na França quanto no exterior”.

Piquenique no Aterro do Flamengo, no domingo 27 de março, organizado pelo coletivo de esquerda Traits-d’union.
Piquenique no Aterro do Flamengo, no domingo 27 de março, organizado pelo coletivo de esquerda Traits-d’union. © Traits-d’union

O grupo também avalia negativamente o plano de ação pública lançado este ano pelo governo francês. “Esse manifesto lembra os valores que compartilhamos de solidariedade, troca, ecologia e união. Ele também dá uma perspectiva desse plano de ação pública de 2022 do governo Macron, que na verdade foi um plano histórico da redução de efetivos e de recursos que garantem o acesso aos direitos dos franceses no exterior. Não tem mais atendimento telefônico no Consulado. Uma pessoa tem que responder a 600 e-mails por dia. Cada vez mais, a gente não tem mais relação com nossa administração pública”, garante Mélanie Montinard, representante consular do Traits-d’Union.

Ela indica que o corte de pessoal no Consulado* teria sido de 10%, provocando dificuldade de atendimento e demora na expedição de documentos, como o passaporte. A pandemia de Covid-19, que suspendeu o serviço presencial, complicou ainda mais a situação.

Os participantes do piquenique se sentem “abandonados” por Paris. Segurança, aposentadoria e auxílios para os franceses que moram no estrangeiro são as principais reivindicações.

“A primeira expectativa é com a questão da segurança que [domina] a atualidade; a questão da crise na Europa e suas repercussões internacionais. E tem a questão da aposentadoria. Essas são as duas questões maiores. Tem também a questão dos investimentos a projetos profissionais que também faz parte, isto é, como a gente consegue sobreviver nesse contexto turbulento”, detalha Mélanie Montinard. A luta climática também foi abordada como prioridade.

Mélanie Montinard, représentante consular dos franceses no Rio de Janeiro do Traits-d’union
Mélanie Montinard, représentante consular dos franceses no Rio de Janeiro do Traits-d’union © Arquivo Pessoal

 

Voto útil

 

Durante o piquenique, os eleitores franceses no Brasil trocaram ideias sobre qual candidato da esquerda seria o melhor para defender essas reivindicações. O líder da France Insoumise (A França Insubmissa, LFI), Jean-Luc Mélenchon, que aparece em terceira posição nas pesquisas, foi o mais citado. Algumas pessoas revelaram que teriam votado para Christiane Taubira (que finalmente retirou sua candidatura) e ressaltaram que preferiam uma candidata mulher.

“Valérie Pécresse? Marine Le Pen?” brincaram outros participantes se referindo às candidatas do partido conservador “Os Republicanos” e de extrema direita “Reunião Nacional”. O nome da candidata do Partido Socialista, Anne Hidalgo, não foi mencionado.

Algumas dúvidas sobre a “polêmica” personalidade de Jean-Luc Mélenchon foram levantadas, mas a representante do LFI no piquenique, Florence Poznanski, lembrou que o candidato promete “devolver o poder ao povo em dois anos, após convocar uma Assembleia Constituinte e criar a 6ª República”. 

Piquenique no Aterro do Flamengo, no domingo 27 de março, organizado pelo coletivo de esquerda Traits-d’Union.
Piquenique no Aterro do Flamengo, no domingo 27 de março, organizado pelo coletivo de esquerda Traits-d’Union. © Traits-d’union

A ideia de um voto útil à esquerda já no primeiro turno ganhou corpo no piquenique. “Este piquenique do Traits-d’Union reúne todas as componentes da esquerda. Na França, é um combate entre cada partido, tendência, e aqui eles estão reunidos. Vejo que o combate na França não destruiu essa ideia de fazer convergir valores comuns que temos na esquerda”, afirmou François Roubaud, economista do Instituto de Pesquisa e Desenvolvimento, que realiza um intercâmbio na UFRJ, e vai votar no LFI.

Eliminar Marine Le Pen e eleger Mélenchon impediria o repeteco da eleição de 2017. Um duelo entre o líder da França Insubmissa e Emmanuel Macron traria de volta um segundo turno entre a esquerda e a direita e permitiria um outro debate de ideias, acreditam os participantes.

François Roubaud
François Roubaud © Arquivo Pessoal

Questões que preocupam franceses no Brasil

No mesmo dia do piquenique da esquerda no Aterro do Flamengo, a senadora Samantha Cazebonne, representante dos franceses no exterior do partido A República em Marcha (LREM), de Macron, se reuniu com eleitores em um restaurante do Leme. Julie Brancante, que participa da Rio Accueil, uma associação apolítica que recebe e ajuda os franceses a se instalarem na cidade, estava presente. Segundo ela, três questões preocupam os franceses que moram no Brasil: a educação dos filhos, a segurança sanitária nesse momento de pandemia e o atendimento consular.

“É sempre interessante a gente que está muito longe se sentir escutado e poder compartilhar a nossa realidade aqui. Muitas vezes essa realidade é privilegiada, mas existem sim umas questões e em momentos de campanha presidencial é importante a gente questionar e saber onde a gente vai, o que pode mudar, melhorar, reconhecer o que foi feito de bom e o que poderia ser melhor”, aponta.

Julie Brancante, que é casada com um diplomata e já morou em vários países, prefere não dizer em quem vai votar, mas acredita que os franceses que moram no estrangeiro não votam nos extremos e que haverá um voto de continuidade. “Nos países onde eu vivi, pude presenciar que os votos são mais de centro. Eu acredito que será a mesmo caso este ano. (...) No segundo turno, eu acho que aqui a gente se pergunta menos em quem votar. É muito mais óbvio. Pelo menos ao meu redor, senti essa clareza, extrema direita não! Um voto radical não faz tanto sentido quando a gente mora fora”, relata.

Os dados da eleição francesa de 2017 no Brasil confirmam essa percepção. Há cinco anos, Emmanuel Macron liderou o primeiro turno com pouco mais de 43% dos votos e venceu o segundo turno com mais de 93% dos votos. Mas a abstenção, que volta a ser uma preocupação este ano, foi grande. No Consulado do Rio de Janeiro, apenas 30% dos eleitores votaram.

Um pouco menos de 20 mil franceses estão inscritos nas três repartições consulares da França no Brasil, mas as autoridades acreditam que esse número possa ser duas vezes maior.

Eleições legislativas

Apesar do avanço de Mélenchon nas pesquisas, Patrick Maury, pesquisador francês que mora em Belo Horizonte e vota no LFI, considera mais provável é um voto de continuidade. Por isso, ele espera uma grande mobilização para a escolha de um Parlamento representativo nas eleições legislativas de junho, capaz de contrapor o Executivo. Patrick Maury, que também vota no Brasil, faz um paralelo entre a situação nos dois países.

“Não tem um amanhã feliz, é um processo de longa duração. Isso está em curso no Brasil, com uma conjuntura atual socialmente não muito favorável, mas com perspectiva a médio prazo mais interessante. É um pouco a mesma coisa que eu espero da França. Um segundo tempo parlamentar que de fato represente as aspirações da sociedade, que as pessoas não votem somente útil, mas votem em função de suas convicções”, propõe.

Patrick Maury, pesquisador francês radicado em Belo Horizonte
Patrick Maury, pesquisador francês radicado em Belo Horizonte © A. Brandão/ RFI

A eleição de outubro no Brasil também é ressaltada por Irène Seigle, nutricionista aposentada, que mora há anos no Rio, integra o Traits-d’Union e vota em Mélenchon. “Nosso candidato de esquerda, o Mélenchon, está prometendo uma ajuda para os franceses e, depois, tem as legislativas quando a gente pode votar para pessoas diferentes. Sempre aproveito para fazer campanha para o Psol ou outro partido para as eleições brasileiras. Todos os franceses [que estão] aqui trabalham, são casados, vivem no Brasil. A gente não pode dividir. Tem que fazer as coisas juntas, para mim é importante isso. Estou aqui para ajudar a votar contra o Bolsonaro”, indica Irène.

Depois dos sinais de união do voto no primeiro turno no piquenique dos eleitores franceses de esquerda no Aterro do Flamengo, alguém pergunta: e o que vamos fazer no segundo turno? Resposta no dia 24 de abril.

*A reportagem tinha uma entrevista agendada com o cônsul-geral da França no Rio de Janeiro, Gérard Maréchal, que por motivos de força maior não pôde ser realizada com previsto. Posteriormente, o cônsul não quis responder às nossas perguntas por email.

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