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Reportagem

Vacinação contra a Covid-19 completa um ano, mas acesso a imunizantes é desigual

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Há exatamente um ano, o Reino Unido inaugurava a campanha de vacinação contra a Covid-19. Tinha início, em todo o planeta, uma corrida contra o tempo para reduzir o número de casos graves e mortes e aliviar as medidas de restrição, que mergulharam a economia mundial em recessão.

Enfermeira vacina paciente contra a Covid-19 no Guy's Hospital, em Londres, em 8 de dezembro de 2020.
Enfermeira vacina paciente contra a Covid-19 no Guy's Hospital, em Londres, em 8 de dezembro de 2020. AP - Frank Augstein
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Taíssa Stivanin, da RFI

Os britânicos utilizaram principalmente o imunizante desenvolvido pelo laboratório AstraZeneca em parceria com a Oxford, uma das vinte vacinas que ainda são aplicadas no mundo, e desenvolvida em cerca de um ano – o vírus, como se sabe, foi descoberto em 2019 em Wuhan, na China.

A tecnologia usada pela AstraZeneca/Oxford é a do adenovírus – um vírus de resfriado enfraquecido, retirado de um chimpanzé, que em seguida é modificado geneticamente. Esse vetor viral carrega o material genético da proteína Spike, que o coronavírus utiliza para entrar nas células humanas, fazendo com o que o organismo produza anticorpos contra o SARS-CoV-2.

O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que teve Covid-19, recebe dose da vacina da AstraZeneca.
O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, que teve Covid-19, recebe dose da vacina da AstraZeneca. Matt Dunham POOL/AFP

Mas a verdadeira revolução na história dessa campanha inédita foi o aparecimento das vacinas que utilizam o RNA mensageiro. No início, os imunizantes foram vistos com receio por parte da população, reticente a injetar uma tecnologia considerada nova, mas que, na realidade, já vinha sendo estudada desde 1998.

Foi nessa época que o imunologista suíço Steve Pascolo iniciou pesquisas sobre o uso da técnica em vacinas destinadas a tratar pacientes com câncer, na universidade de Tubingen, na Alemanha, e na empresa de biotecnologia CureVac, nos anos 2000, da qual ele é co-fundador.

O grande desafio era preservar as características da molécula de RNA, que se degrada rapidamente. “Uma das principais linhas de pesquisa dos últimos anos foi em relação à concepção da 'embalagem', a cápsula que envolveria essa cópia de molécula de RNA mensageiro, que é muito instável fora das células. Além disso, essa cápsula deveria se autodestruir no momento certo, para que o RNA pudesse agir dentro da célula”, explicou o pesquisador em entrevista à RFI.

“Por isso, uma grande parte da evolução do RNA mensageiro, nos últimos anos, esteve relacionada a esse invólucro que o protege, chamado de lipossomo ou nanopartícula. O desafio, mais uma vez, foi achar lipossomos e nanopartículas capazes de encapsular o RNA, para protegê-lo e possibilitar sua penetração na célula”, completa.

Ugur Sahin, um dos fundadores da BioNTech, que desenvolveu uma das primeira vacinas contra a Covid
Ugur Sahin, um dos fundadores da BioNTech, que desenvolveu uma das primeira vacinas contra a Covid REUTERS - Fabian Bimmer

Vacina da Pfizer foi lançada em um ano

O RNA mensageiro também interessou um casal de pesquisadores: os hoje célebres Ugur Sahin e Ozlem Tureci, que criaram a empresa de biotecnologia BioNTech em 2008 para, como Steve Pascolo, testar a vacina contra o câncer. Ugur é de origem turca. Ele chegou quando ainda era criança na Alemanha e se tornou imunologista. Tureci nasceu no país e é filha de um cirurgião. Os dois se encontraram no hospital onde trabalhavam e criaram a primeira empresa, juntos, em 2001.

Quando o novo coronavírus foi identificado em Wuhan e os pesquisadores tiveram acesso aos primeiros dados sobre o o vírus e o perigo que ele representava, ao provocar pneumonias que levavam a uma grave insuficiência respiratória, o imunologista da BioNTech decidiu colocar seus 1.500 assalariados para trabalhar em uma vacina que utilizasse o RNA mensageiro contra o coronavírus, após a assinatura de um contrato com a gigante farmacêutica Pfizer. Em menos de um ano, o laboratório lançou a vacina no mercado.

O imunizante age enviando instruções para o sistema imunológico combater o SARS-CoV-2. Paralelamente, a empresa Moderna, criada em 2010 nos Estados, também desenvolveu uma vacina similar altamente eficaz, mais dosada em RNA mensageiro, mas que, devido ao preço elevado, acabou se popularizando menos do que a vacina da Pfizer, administrada em bilhões de pessoas em todo o mundo.

Após o Reino Unido dar a largada em dezembro de 2020, vários países começaram a vacinar seus cidadãos no mesmo mês, a maioria com a vacina de RNA mensageiro do laboratório Pfizer/BioNTech: Estados Unidos, Canadá e Emirados Árabes Unidos, em 14 de dezembro; Arábia Saudita no dia 17; Israel no dia 19; e a União Europeia no dia 27.

Na França, a primeira vacinada, em 27 de dezembro, foi Mauricette, 78 anos, residente em uma casa de repouso medicalizada para idosos, na região parisiense. Desde então, mais metade da população mundial recebeu ao menos uma dose da vacina, o equivalente a 4,3 bilhões de pessoas, e 44% estão com o esquema vacinal completo. No total, 8,1 bilhões de doses foram aplicadas no mundo.

Além da AstraZeneca e Pfizer, as outras vacinas mais usadas são as desenvolvidas pelos laboratórios americanos Johnson & Johnson e Moderna, as chinesas Sinopharm e Sinovac e a russa Sputnik V.

Bilhões de doses da Pfizer foram administradas desde o início da campanha de vacinação
Bilhões de doses da Pfizer foram administradas desde o início da campanha de vacinação AP - Juan Karita

Desigualdade no acesso

Com a chegada da ômicron, variante surgida em novembro na África do Sul, um dos países com a mais baixa taxa de vacinação do mundo, a questão da desigualdade do acesso à vacina se tornou essencial.

Nos países mais pobres, o ritmo mais lento contribui para ao aparecimento de novas cepas, que encontram um terreno fértil em um nicho não vacinado. O mecanismo Covax, liderado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para garantir acesso igualitário às vacinas, entregou a primeira remessa no fim de fevereiro em Gana. Até agora, o Covax distribuiu apenas 591 milhões de doses a 144 países ou territórios, muito abaixo da meta de 2 bilhões estabelecida para 2021.

Para especialistas como a infectologista e professora da Universidade Federal de Goiás Cristiana Toscano, única brasileira e sul-americana no Grupo Estratégico Internacional de Experts em Vacinas (Sage) da OMS, o Covax não basta para assegurar uma distribuição mais justa dos imunizantes.

“A ciência cumpriu seu papel, temos muitas vacinas desenvolvidas e disponibilizadas e em desenvolvimento”, disse. “Mas acho que a humanidade está falhando, principalmente os políticos dos vários países e a articulação global nesse sentido, para de fato garantir o acesso igualitário e que as pessoas do mundo todo consigam ser vacinadas”, disse em entrevista à RFI em fevereiro deste ano.

Desde junho de 2021, praticamente todos os países estão aplicando as vacinas, mas o ritmo ainda é lento e faltam doses. De acordo com uma classificação do Banco Mundial, a média mundial é de 104 para cada 100 habitantes. Nos países de alta renda, essa média chega a 149 para 100.

A África, onde surgiu a ômicron, é o continente menos protegido, com 18 doses para cada 100 habitantes. Burundi e República Democrática do Congo são os países menos vacinados, com 0,007% e 0,06% da população respectivamente.

Vacinas distribuídas pelo mecanismo Covax chegam a Madagascar.
Vacinas distribuídas pelo mecanismo Covax chegam a Madagascar. AP - Alexander Joe

Terceira dose e vacina para crianças

Com a descoberta de que a proteção das vacinas diminui com o tempo, a administração de uma terceira dose busca manter a proteção da população e também reforçar a taxa de anticorpos diante da chegada da ômicron, que pode ser menos sensível aos imunizantes.

A abertura da vacinação paras crianças de 5 a 11 anos, que começou em poucos países, também poderá mudar o curso da epidemia. A imunização nessa faixa etária causa polêmica, mas é fundamental para o controle da epidemia, como explicou à RFI o pediatra americano Willie Ng. Ele tem mais de 40 anos de experiência e atua em uma clínica de Cincinatti, em Ohio. “Sou a favor da vacina para todas as crianças, até as mais jovens. Há muitos pais que acham que como os casos são leves na maioria, é melhor adquirir a imunidade natural. Acho que sempre há o risco de se ter um caso mais severo, ou desenvolver a Covid-19 longa. Nunca se sabe, sempre é melhor prevenir”, afirma.

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