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Radar econômico

Plataformas de roupas de segunda mão atendem a “moda ecológica”, mas incitam a ainda mais consumo

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Durante muito tempo tabu, a compra de roupas de segunda mão cresce a um ritmo jamais visto em uma das mecas da moda, a França, graças a aplicativos especializados. Mas se engana quem pensa que os usuários estão em busca de um consumo mais sustentável. As pesquisas mostram que, embora, no discurso, muitos adeptos evoquem um gesto ambientalmente responsável, na prática esses sites se tornaram um meio de consumir ainda mais.

A França, principal mercado do Vinted na Europa, já conta com 18 milhões de usuários.
A França, principal mercado do Vinted na Europa, já conta com 18 milhões de usuários. © Fotomontagem RFI/Adriana de Freitas
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O fenômeno emergiu entre as fashionistas, mas se espalhou pela sociedade francesa, na esteira da maior conscientização sobre o impacto ambiental do vestuário.

"Os sites representam hoje um peso financeiro considerável: é um mercado de € 1 bilhão, com plataformas francesas que foram pioneiras, como a Videdressing. Mas também percebemos que cada vez mais marcas de roupas novas começam a reservar algumas prateleiras para as usadas”, explica a pesquisadora Sihem Dekhili, especialista em marketing sustentável e consumo ecológico na Universidade de Estrasburgo.

"Assistimos a um fenômeno em que comprar roupas usadas se tornou, de certa forma, uma moda. Podemos então conceber que, para alguns adeptos, comprar usados representa um certo status, para passar uma imagem de ser ecológico”, observa.

Acesso a marcas caras, pela metade do preço

Para muitas famílias, comprar e vender as roupas, sapatos e acessórios também se tornou uma maneira de praticamente zerar os gastos com esses produtos. Num contexto econômico de inflação alta e perda de poder aquisitivo, sites como o Vinted, hoje líder no setor, aparecem como uma solução ideal – muitas das peças à venda ainda estão até com a etiqueta.

Para a enfermeira Adeline S., 37 anos, a principal vantagem é ter acesso a grifes caras pela metade do preço. "Vou primeiro tentar usado, para tentar consumir menos e de melhor qualidade. Meu filho, de oito anos, gosta de um casaco de inverno de uma boa marca e eu sempre compro o mesmo, a cada ano. Novo, ele custa mais de €100, mas eu sempre consigo encontrar um bom negócio na plataforma”, conta. "Com a diferença, uso o dinheiro para outros projetos ou necessidades, ou para o lazer."

"A preocupação ambiental acelerou a expansão das plataformas de roupas de segunda mão, mas está longe de estar na cabeça das primeiras e principais usuárias desses sites, as viciadas em moda e fast fashion. Essa é uma das conclusões de um amplo estudo, iniciado em 2013, pela pesquisadora Elodie Juge sobre consumo colaborativo, no grupo de estudos Trend(s), da Universidade de Lille. Ela constatou que esses sites apareceram para suprir uma demanda dessas consumidoras: liberar espaço no guarda-roupas e dinheiro para adquirirem ainda mais peças, sejam novas ou usadas.

"No fundo, todos nós queremos acreditar que o objetivo delas é fazer um gesto pelo planeta. Eu também queria acreditar que poderíamos passar a comprar de outra maneira, mais consciente. Mas a verdade é que não é isso”, relata a pesquisadora. "Entrei num mundo de pessoas extremamente competitivas. Elas vendem para comprar mais. Essas plataformas de usados se transformaram na maior escola de negócios da França”, ironiza.

Comprar mais, com a consciência tranquila

Sihem Dekhili avalia que aplicativos como Vinted têm um "efeito perverso embutido": como os produtos são de segunda mão, estaria liberado comprar à vontade, com a consciência tranquila. A França, principal mercado do site na Europa, já conta com 18 milhões de usuários.

"O setor da moda está em segundo lugar no ranking de poluição, atrás do petróleo. O impacto ambiental é realmente muito significativo, e nesse sentido, atores como Vinted se colocam como colaboradores para ajudar a reduzir o impacto negativo da moda e ao implementar um novo modelo de consumo, mais consciente”, afirma. "Porém, ao mesmo tempo, eles retomam velhas táticas clássicas de marketing, como enviar sem parar notificações sobre promoções. Eles incitam a mais consumo”, sublinha.

Foi então que as fashionistas se tornaram “empreendedoras delas mesmas", como define Elodie Juge. Os guarda-roupas delas representam um capital a ser rentabilizado – uma tarefa na qual elas investem várias horas por dia.

Muitas ficam viciadas na nova atividade: fazem questão de caprichar nas fotos de cada peça, na embalagem dos artigos e no envio, em busca de comentários elogiosos e uma avaliação 5 estrelas ao final da transação. Ao mesmo tempo, não desgrudam do telefone à procura de uma nova joia rara: uma bolsa de luxo, um vestido exclusivo ou, simplesmente, mais uma dezena de peças baratinhas de marcas consagradas de fast fashion, com Zara e H&M.

Peças de lojas clássicas de fast fashion, como Zara, encontram-se aos milhares em plataformas como Vinted. (Foto de 25/09/2021)
Peças de lojas clássicas de fast fashion, como Zara, encontram-se aos milhares em plataformas como Vinted. (Foto de 25/09/2021) Nhac Nguyen AFP/Archivos

"O objetivo é sempre o mesmo: encontrar um bom negócio. As usuárias se transformam em concorrentes umas das outras para serem as mais rápidas a comprar e vender, ter o armário mais em linha com a última moda”, comenta Juge. "Elas viraram verdadeiras vendedoras, que sabem comprar e vender no bom momento, no melhor preço, e têm uma forte competência empreendedora; competências que se inscrevem totalmente no neoliberalismo e no capitalismo desmedido”, analisa a professora.

A partir de 2020, ressalta Juge, os homens e até adolescentes também passaram a se interessar pelo Vinted, principalmente  atrás de calçados sneakers. Mas as mulheres ainda representam 90% dos inscritos do site.

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