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Planeta Verde

França discute ‘compostagem humana’ como alternativa ecológica a enterro ou cremação

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Até na hora de morrer, os seres humanos emitem gases de efeito estufa: os procedimentos envolvidos no enterro de uma pessoa geram em média o equivalente ao gás carbônico (CO₂) despejado na atmosfera em um trajeto de 4 mil quilômetros de um carro a gasolina, conforme um estudo encomendado pelos Serviços Funerários da Prefeitura de Paris.

A prática da humusação está começando a ganhar terreno, principalmente nos Estados Unidos.
A prática da humusação está começando a ganhar terreno, principalmente nos Estados Unidos. AFP - JASON REDMOND
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A redução da pegada de carbono após a morte mobiliza associações e parlamentares franceses, que buscam desenvolver a ainda pouco conhecida prática da terramação, com técnicas inspiradas na compostagem na terra.

"É exatamente o mesmo processo, mas o termo compostagem designa o que a gente faz no nosso jardim, e a imagem que a gente tem disso é de lixo. Então o termo 'compostagem humana' é considerado pejorativo e outras opções foram propostas”, esclarece o doutor em biologia e especialista em ecossistemas cadavéricos Damien Charabidze, professor-associado da Universidade de Lille.

A terramação, ou “humusação”, como também é chamada na França, consiste em poder enterrar o corpo diretamente na terra, sem um caixão, e recoberto por fragmentos vegetais que facilitem a decomposição por micro-organismos, antes de se transformar em húmus. Atualmente, o procedimento é proibido em praticamente todo o mundo, à exceção de alguns estados norte-americanos.

Nesta semana, um colóquio foi organizado na Assembleia Nacional francesa para reunir os mais diversos atores envolvidos na questão, como associações que militam pela autorização da prática, funerárias e prefeitos, mas também estudiosos da morte e do luto. Um projeto de lei foi apresentado no começo do ano pela deputada centrista Élodie Jacquier Laforge para que experimentações sejam iniciadas no país.

"O que precisamos é testar como podemos fazer em um contexto funerário, o que precisamos controlar, quanto tempo vai demorar, para que o processo seja eficaz, sem risco sanitário, e ao mesmo tempo respeite os mortos”, afirma o pesquisador.

A funerária americana Return Home é especializada em terramação em Auburn, Washington, com o corpo enterrado em um caixão. Em 2019, Washington se tornou o primeiro estado a legalizar a prática. (14/03/2022).
A funerária americana Return Home é especializada em terramação em Auburn, Washington, com o corpo enterrado em um caixão. Em 2019, Washington se tornou o primeiro estado a legalizar a prática. (14/03/2022). AFP - JASON REDMOND

A lei francesa proíbe o enterro sem caixão e o sepultamento deve ser feito em covas com no mínimo 1,5 metro de profundidade. "Hoje, nós colocamos o corpo num ambiente pobre em matéria viva, sem oxigênio. Isso induz a uma decomposição mais problemática, com produção de toxinas, e não uma decomposição natural, que leve ao húmus”, explica Pierre Berneur, presidente de uma dessas organizações, Humo Sapiens.

“As matérias orgânicas devem estar sobre o solo, e não lá embaixo. Toda a microfauna dos primeiros centímetros de solo se alimenta das matérias orgânicas e poderá, pouco a pouco, transformá-las em húmus, que se tornará fértil”, diz.

Etapas delicadas

Como na compostagem, o procedimento com humanos envolveria algumas etapas delicadas, como ter de revirar o corpo de três a quatro vezes no período de um ano, para arejar a cova e renovar o contato com a matéria vegetal e, assim facilitar a degradação natural dos tecidos. A decomposição gera elevação da temperatura a cerca de 65C, suficiente para neutralizar a maioria dos vírus e bactérias que poderiam ser foco de contaminação.

"A questão é ter certeza de que teremos as boas condições para aumentar a temperatura. Para isso, precisamos ser rigorosos: quando tudo é bem feito, sim, funciona”, garante Damien Charabidze. "Mas sempre haverá agentes patogênicos que podem ser resistentes, a exemplo dos príons que transmitem a vaca louca e que são extremamente resistentes. Sem passar pelo fogo, não conseguimos destruí-los”, pondera.

Cemitério de Ivry, na região parisiense, já oferece alternativas ecológicas de enterro direto na terra, mas em um caixão.
Cemitério de Ivry, na região parisiense, já oferece alternativas ecológicas de enterro direto na terra, mas em um caixão. Jean-Pierre Viguié

No final de 12 meses, só restariam os ossos, que poderiam ser moídos e misturados ao composto, transformado agora em húmus. Assim como qualquer adubo natural, este também poderia ser utilizado para a fertilização da terra.

“A ideia não é usar esse solo para plantar tomates, mas sim poder reinjetar os nossos restos no ciclo dos seres vivos. Poder plantar uma árvore é uma solução que pode ser apreciada pelos familiares e próximos, para quando eles quiserem visitar o ente querido”, sugere o biologista.

Emissões dos funerais 

Na ausência de autorização legal para a prática, ainda faltam estudos comparativos sobre o impacto ambiental das tradições funerárias. Uma pesquisa de 2017 realizada a pedido da prefeitura de Paris mostrou que a cremação representava 3% das emissões médias de CO₂ de um adulto no período de um ano e o sepultamento, quase quatro vezes mais (11%). O enterro tradicional ainda deixa um rastro de poluição, como o concreto usado no túmulo e a decomposição da madeira dos caixões, tratada com produtos químicos tóxicos como o poliuretano.

“Eram 233 quilos de CO₂ em uma cremação e mais de 800 quilos em um enterro, sendo que na cremação as emissões vêm mais da combustão de energias fósseis, pelo gás utilizado, e no enterro, vêm do transporte de todo o material necessário para o sepultamento. Nos dois casos, temos a intenção de proteger o corpo de uma degradação e do seu contato com a terra, portanto com o ciclo da natureza”, salienta Pierre Berneur. "Isso gera um custo energético – logo, um impacto ambiental. Com a terramação, não tentamos mais nadar contra a maré, e sim nos reintegrar no ciclo natural", explica.

Num contexto em que a preocupação ambiental é crescente, uma pesquisa do instituto OpinionWay, encomendada pela Humo Sapiens em 2022, mostrou que 73% dos franceses gostariam de ter uma “morte mais ecológica” e 46% estariam dispostos a escolher a terramação. O procedimento seria enquadrado por uma nova categoria profissional, que uniria a expertise em compostagem aos serviços funerários.

Para associação Humo Sapiens, apesar de todos os tabus a serem quebrados, esta alternativa daria um novo sentido à morte: possibilitaria não apenas ao ser humano interromper a sua pegada de carbono ao falecer, como daria a ele a chance de contribuir para a regeneração do meio ambiente.

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