França discute ‘compostagem humana’ como alternativa ecológica a enterro ou cremação
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Até na hora de morrer, os seres humanos emitem gases de efeito estufa: os procedimentos envolvidos no enterro de uma pessoa geram em média o equivalente ao gás carbônico (CO₂) despejado na atmosfera em um trajeto de 4 mil quilômetros de um carro a gasolina, conforme um estudo encomendado pelos Serviços Funerários da Prefeitura de Paris.
A redução da pegada de carbono após a morte mobiliza associações e parlamentares franceses, que buscam desenvolver a ainda pouco conhecida prática da terramação, com técnicas inspiradas na compostagem na terra.
"É exatamente o mesmo processo, mas o termo compostagem designa o que a gente faz no nosso jardim, e a imagem que a gente tem disso é de lixo. Então o termo 'compostagem humana' é considerado pejorativo e outras opções foram propostas”, esclarece o doutor em biologia e especialista em ecossistemas cadavéricos Damien Charabidze, professor-associado da Universidade de Lille.
A terramação, ou “humusação”, como também é chamada na França, consiste em poder enterrar o corpo diretamente na terra, sem um caixão, e recoberto por fragmentos vegetais que facilitem a decomposição por micro-organismos, antes de se transformar em húmus. Atualmente, o procedimento é proibido em praticamente todo o mundo, à exceção de alguns estados norte-americanos.
Nesta semana, um colóquio foi organizado na Assembleia Nacional francesa para reunir os mais diversos atores envolvidos na questão, como associações que militam pela autorização da prática, funerárias e prefeitos, mas também estudiosos da morte e do luto. Um projeto de lei foi apresentado no começo do ano pela deputada centrista Élodie Jacquier Laforge para que experimentações sejam iniciadas no país.
"O que precisamos é testar como podemos fazer em um contexto funerário, o que precisamos controlar, quanto tempo vai demorar, para que o processo seja eficaz, sem risco sanitário, e ao mesmo tempo respeite os mortos”, afirma o pesquisador.
A lei francesa proíbe o enterro sem caixão e o sepultamento deve ser feito em covas com no mínimo 1,5 metro de profundidade. "Hoje, nós colocamos o corpo num ambiente pobre em matéria viva, sem oxigênio. Isso induz a uma decomposição mais problemática, com produção de toxinas, e não uma decomposição natural, que leve ao húmus”, explica Pierre Berneur, presidente de uma dessas organizações, Humo Sapiens.
“As matérias orgânicas devem estar sobre o solo, e não lá embaixo. Toda a microfauna dos primeiros centímetros de solo se alimenta das matérias orgânicas e poderá, pouco a pouco, transformá-las em húmus, que se tornará fértil”, diz.
Etapas delicadas
Como na compostagem, o procedimento com humanos envolveria algumas etapas delicadas, como ter de revirar o corpo de três a quatro vezes no período de um ano, para arejar a cova e renovar o contato com a matéria vegetal e, assim facilitar a degradação natural dos tecidos. A decomposição gera elevação da temperatura a cerca de 65C, suficiente para neutralizar a maioria dos vírus e bactérias que poderiam ser foco de contaminação.
"A questão é ter certeza de que teremos as boas condições para aumentar a temperatura. Para isso, precisamos ser rigorosos: quando tudo é bem feito, sim, funciona”, garante Damien Charabidze. "Mas sempre haverá agentes patogênicos que podem ser resistentes, a exemplo dos príons que transmitem a vaca louca e que são extremamente resistentes. Sem passar pelo fogo, não conseguimos destruí-los”, pondera.
No final de 12 meses, só restariam os ossos, que poderiam ser moídos e misturados ao composto, transformado agora em húmus. Assim como qualquer adubo natural, este também poderia ser utilizado para a fertilização da terra.
“A ideia não é usar esse solo para plantar tomates, mas sim poder reinjetar os nossos restos no ciclo dos seres vivos. Poder plantar uma árvore é uma solução que pode ser apreciada pelos familiares e próximos, para quando eles quiserem visitar o ente querido”, sugere o biologista.
Emissões dos funerais
Na ausência de autorização legal para a prática, ainda faltam estudos comparativos sobre o impacto ambiental das tradições funerárias. Uma pesquisa de 2017 realizada a pedido da prefeitura de Paris mostrou que a cremação representava 3% das emissões médias de CO₂ de um adulto no período de um ano e o sepultamento, quase quatro vezes mais (11%). O enterro tradicional ainda deixa um rastro de poluição, como o concreto usado no túmulo e a decomposição da madeira dos caixões, tratada com produtos químicos tóxicos como o poliuretano.
“Eram 233 quilos de CO₂ em uma cremação e mais de 800 quilos em um enterro, sendo que na cremação as emissões vêm mais da combustão de energias fósseis, pelo gás utilizado, e no enterro, vêm do transporte de todo o material necessário para o sepultamento. Nos dois casos, temos a intenção de proteger o corpo de uma degradação e do seu contato com a terra, portanto com o ciclo da natureza”, salienta Pierre Berneur. "Isso gera um custo energético – logo, um impacto ambiental. Com a terramação, não tentamos mais nadar contra a maré, e sim nos reintegrar no ciclo natural", explica.
Num contexto em que a preocupação ambiental é crescente, uma pesquisa do instituto OpinionWay, encomendada pela Humo Sapiens em 2022, mostrou que 73% dos franceses gostariam de ter uma “morte mais ecológica” e 46% estariam dispostos a escolher a terramação. O procedimento seria enquadrado por uma nova categoria profissional, que uniria a expertise em compostagem aos serviços funerários.
Para associação Humo Sapiens, apesar de todos os tabus a serem quebrados, esta alternativa daria um novo sentido à morte: possibilitaria não apenas ao ser humano interromper a sua pegada de carbono ao falecer, como daria a ele a chance de contribuir para a regeneração do meio ambiente.
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