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Linha Direta

O que explica os altos índices de violência contra mulheres no Brasil?

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O número de mortes de mulheres por questão de gênero tem preocupado autoridades e sociedade no Brasil. Em locais como o Distrito Federal, o total de mortes do começo deste ano até o mês de junho já superou o número de feminicídios de 2022. Especialistas ouvidas pela RFI afirmam que o discurso misógino, a falta de investimentos dos últimos anos, a política armamentista e um judiciário ainda tolerante com crimes dessa natureza dificultam a proteção das vítimas.

Uma mulher é morta a cada seis horas no Brasil, simplesmente pelo fato de ser mulher.
Uma mulher é morta a cada seis horas no Brasil, simplesmente pelo fato de ser mulher. LOIC VENANCE / AFP
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Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

Um bilhete enviado no caderno do filho garantiu a sobrevivência de uma mulher que era mantida refém sob tortura na grande Belo Horizonte. Em situação semelhante, uma mãe com medo de morrer mandou um bilhete para a diretora da escola do filho implorando ajuda. Os dois casos são deste ano e terminaram com as mulheres vivas e seus parceiros presos. Mas muitas outras histórias de ameaças e violência doméstica no país não têm o mesmo final.

De acordo com o consórcio Monitor da Violência*, uma mulher é morta a cada seis horas no Brasil, simplesmente pelo fato de ser mulher. Além disso, uma menina ou mulher é estuprada a cada nove minutos, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

No Distrito Federal, por exemplo, foram 20 casos de feminicídio este ano, já superando as mortes deste tipo em todo o ano passado. Num dos casos, uma enfermeira foi morta a tiros pelo marido na frente do filho adolescente.

A advogada e jurista Soraia Mendes diz que o patriarcado, modelo de sociedade onde o homem tem mais poder do que a mulher, está na base da violência doméstica no Brasil e no mundo. Mas que outros fatores ajudaram a piorar esse quadro nos últimos anos no país.

“De 2016 para cá e, mais especialmente nos últimos quatro anos, com o governo Bolsonaro, nós vivemos no Brasil um desmonte das políticas públicas de proteção às mulheres. Praticamente zeramos investimento em proteção, em divulgação, em campanhas. E do outro lado, houve um avanço de um discurso misógino, de ódio em relação às mulheres.”

Mendes avalia que um dos caminhos para vencer a mentalidade machista que gera violência e discriminação é superar a visão negativa que recai sobre temas que viraram tabus na sociedade, como a questão de gênero. “Falar de patriarcado, falar de feminismo, falar sobre gênero é falar de um projeto democrático, um projeto de felicidade. Será muito bom quando nós mulheres não tivermos mais medo de perder nossas vidas. E quando meninos não forem mais socializados para serem violentos e subjugadores”, diz.

Machismo e pedofilia

Em Brasília repercutiu muito nos últimos dias o caso de uma menina de 12 anos que foi sequestrada no caminho da escola, carregada numa mala e estuprada por um funcionário de um banco. A psicóloga e professora da Universidade de Brasília, Carla Antloga, disse que o pensamento machista está na base também desses crimes contra crianças.

“A cultura machista é a ideia de que os homens são superiores só porque eles são homens. Os homens que se acham superiores têm a ideia de tudo aquilo que não é vinculado à masculinidade, tudo aquilo que é oposto à masculinidade, como a criança, não merece respeito. Então masculinidade é força. Criança é fragilidade. Fragilidade é o oposto daquilo que é esperado no masculino, então ele não tem por que respeitar. Nessa visão, a criança e a mulher não merecem ser valorizadas, a não ser que sejam para consumo, para satisfação e para o enriquecimento do homem”, explicou Antloga.

A psicóloga também ressalta o discurso contraditório de quem diz defender as mulheres, mas apoiou medidas adotadas pelo governo passado que facilitaram o acesso a armas de fogo pelo cidadão comum. “O discurso de misoginia por si só é complicado. Junto com ele, essa ideia de que população armada é que vai resolver as questões é uma insanidade. Se a maior parte dos feminicídios é cometido por um companheiro ou ex-companheiro, como armar as pessoas vai ajudar nisso? Então a tendência é piorar”, analisa.

Ela lembra que todas as pesquisas mostram que a violência contra a mulher é cometida, na maioria das vezes, dentro de casa. “As pessoas têm uma ilusão de que a violência contra a mulher acontece na rua, de que alguém vai lá, puxa o cabelo dela. Claro que isso acontece também, mas é infinitamente maior o número de estupros e assassinatos que acontecem com parceiros, ex e familiares dentro de casa. E um homem armado, em contexto doméstico, se quiser cometer violência contra a mulher, se ele tiver tendência a isso, ele tem uma arma para fazer isso”, disse Antloga.

Judiciário leniente

O número de mortes de mulheres na capital federal tem deixado apreensivos vários setores da sociedade, com receio de que um caso estimule outro. “O número de 20 feminicídios em um período tão curto nos espanta. Estamos muito preocupados com isso e precisamos trabalhar com muita força. Contamos com o Poder Judiciário, que determina medidas protetivas e pode encarcerar pessoas que venham a cometer esses crimes, que são os mais graves”, disse o governador do Distrito Federal, Ibaneis Rocha (MDB).

Especialistas dizem que mais do que endurecer leis é preciso um esforço para combater o machismo também nos órgãos de apuração e julgamento. No último dia 30, o Supremo Tribunal Federal proibiu de vez a utilização da tese da legítima defesa da honra, que deixou de fazer parte da legislação brasileira já em 1830, mas continuava sendo usada em tribunais como argumento para defender homens que cometeram crime de feminicídio.

“Nós tivemos que ir ao STF para que a Suprema Corte diga de forma definitiva a todo o restante do sistema de justiça que não se pode mais aceitar que um homem alegue que estava com ciúmes ou que supostamente foi traído para matar uma mulher. Essa tese, que já não faz parte do nosso arcabouço jurídico, contraria todos os princípios da dignidade humana, da igualdade. Nós temos penas previstas que não são brandas. Por outro lado, temos ainda entulhos patriarcais que fazem com que principalmente o Judiciário muitas vezes seja leniente com relação à violência contra a mulher”, afirmou Soraia Mendes.

*Monitor da Violência reúne dados levantados pelo portal G1, com o trabalho de pesquisadores da USP e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. 

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