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Entre ‘islamofascistas’ é tradição fazer os mortos votarem, diz advogado de prisioneiros políticos na Turquia

Ahmet Kiraz Hukuk Bürosu nasceu na região que foi o epicentro de uma épica tragédia na história contemporânea da Turquia: o terremoto que, em 6 de fevereiro, deixou pelo menos 50 mil mortos (números oficiais, 200 mil de acordo com fontes paralelas) na região fronteiriça à Síria. O advogado, conhecido em seu país por militar pelos direitos humanos de presos políticos, conta como retirou com as próprias mãos os corpos de familiares dos escombros. Ele recebeu a RFI em Elvan, no centro de Istambul.

O advogado turco Ahmet Kiraz Hukuk Bürosu, ativista e militante pelos direitos dos presos políticos na Turquia, recebe a reportagem da RFI em um café do bairro de Elvan, onde instalou seu "quartel-general", em 26 de maio de 2023.
O advogado turco Ahmet Kiraz Hukuk Bürosu, ativista e militante pelos direitos dos presos políticos na Turquia, recebe a reportagem da RFI em um café do bairro de Elvan, onde instalou seu "quartel-general", em 26 de maio de 2023. © RFI / Marcia Bechara
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Marcia Bechara, enviada especial da RFI a Istambul

Formado em Direito pela Universidade de Estrasburgo, no leste da França, Ahmet Kiraz voltou à Turquia, onde se juntou à oposição pela legenda CHP, de Kemal Kiliçdaroglu, grande adversário de Recep Tayyip Erdogan nestas eleições de 2023. Nascido no vilarejo de Marash, epicentro da tragédia de 6 de fevereiro passado, onde houve cerca de 30 terremotos, na região montanhosa de Elbistan, ele recordou junto à reportagem os momentos dramáticos da retirada dos corpos e do resgate aos sobreviventes.

"Marash também foi o epicentro do segundo terremoto. Foi no meu vilarejo, um vilarejo alevita, nas montanhas", precisou. "Felizmente, a pressão e a pobreza do local fizeram com que muitos de seus habitantes estivessem no continente europeu no dia do terremoto", disse. "A maioria são casas de concreto armado, construídas nos últimos anos, portanto, não houve muitas que desabaram. No entanto, a casa dos meus pais e do meu tio foram ao chão, mas não havia ninguém lá; mas, no centro, perdemos o primo de minha mãe, sua esposa, seu filho de 19 anos e a esposa do outro primo. Também perdemos a sobrinha da minha esposa, uma jovem de 27 anos, com seu marido e duas meninas, de 2 e 6 anos", lamenta.

"Infelizmente, não tínhamos muita esperança de retirar nenhum deles com vida, mas continuamos esperando até o último momento, sem muito sucesso", lembra o advogado, que desenvolve um amplo trabalho em prol dos direitos humanos de prisioneiros políticos nas prisões turcas.

Ahmet é também membro do Comitê de Assuntos Jurídicos do partido CHP, de Kiliçdaroglupara Istambul. Sozinho ele é responsável pela segurança eleitoral no 2º distrito eleitoral da cidade, que abrange 12 distritos e mais de 300 mil eleitores. No dia da eleição, no domingo (28), ele estará coordenando cerca de 1,5 mil advogados em 600 escolas onde as pessoas estarão votando, num total de 8 mil urnas eletrônicas.

 

O advogado turco Ahmet Kiraz Hukuk Bürosu, ativista e militante pelos direitos dos presos políticos na Turquia, consulta mensagens no celular enquanto recebe a reportagem da RFI em um café do bairro de Elvan, onde instalou seu "quartel-general", em 26 de maio de 2023.
O advogado turco Ahmet Kiraz Hukuk Bürosu, ativista e militante pelos direitos dos presos políticos na Turquia, consulta mensagens no celular enquanto recebe a reportagem da RFI em um café do bairro de Elvan, onde instalou seu "quartel-general", em 26 de maio de 2023. © RFI / Marcia Bechara

 

Desaparecidos, ou quando "os mortos votam"

Como os restos mortais de diversos desaparecidos depois do terremoto não foram encontrados, essas pessoas ainda não foram contadas e registradas na lista de vítimas turcas da tragédia. “Há um caso muito emblemático em Hatay. Lá, os corpos de 80 pessoas não foram encontrados depois que uma residência de luxo desmoronou completamente. Bem, sabemos disso, então elas estão desaparecidas, mas não foram oficialmente contabilizadas porque suas mortes não foram declaradas, é claro”, afirma o advogado.

“Análises de DNA estão sendo realizadas e, mais cedo ou mais tarde, elas serão contabilizadas. Mas e depois? Bem, para chegar às consequências desse tipo de problema para as eleições, as mortes dessas pessoas não foram declaradas, mas será que vamos fazê-las votar ou não?”, ironiza, não sem certa amargura, Kiraz. "No referendo de 2010, o Fethullah Gülen, hoje emir de Erdogan, declarou na ocasião que, se 'fosse o caso', seria necessário fazer os mortos votarem’. Entre os islamofascistas turcos, é uma tradição fazer os mortos votarem", suspira o ativista.

"Tememos que eles façam esse tipo de coisa com o voto dos mortos nessas regiões, mas na prática é muito difícil provar esse tipo de fraude, porque, por causa dos terremotos, muitas pessoas perderam seus documentos de identidade e muitos documentos provisórios foram entregues", explica. "Os portadores desses documentos são realmente as próprias pessoas ou outras quaisquer? Nós não sabemos, por isso pedimos que fosse usada a impressão digital com tinta nas cédulas, e o partido de Erdogan recusou", denuncia Ahmet Kiraz.

Kiliçdaroglu ainda poderia vencer as eleições

Para o advogado, o candidato de cores mais progressistas, Kemal Kiliçdarogluainda está no páreo e poderia vencer as eleições no domingo. "Cometemos erros no primeiro turno que já corrigimos. Em primeiro lugar, as pesquisas indicavam a vitória do nosso candidato. Por uma grande maioria, confortavelmente. Então o eleitorado apolítico, mas que também votaria na oposição, não foi às urnas pensando que Kiliçdaroglu venceria de qualquer maneira", avalia.

"Em segundo lugar, tínhamos medo de que, na noite da eleição, se ganhássemos, e achávamos que ganharíamos, haveria violência e excessos; então, de repente, com nosso candidato presidencial na liderança, conclamamos nosso eleitorado a ir votar e depois a ir para casa, a ficar em casa, a manter a calma. Nossos membros das seções eleitorais, nossos observadores, se viram sozinhos diante das ordens do partido de Erdogan, que os pressionou e invalidou votos válidos para a oposição, além de validarem votos inválidos para o governo", denuncia.

"Portanto, esses dois problemas que tivemos no primeiro turno não existirão no segundo. Nossos ativistas monitoram as urnas e convocaram pelo menos cinco observadores para cada uma delas. Portanto, vamos nos mobilizar muito mais fortemente do que no primeiro turno", completou. 

Voto na Turquia é comunitário, religioso e étnico

"Essencialmente, na Turquia, a população vota em uma base comunitária. O voto é comunitário e étnico. E religioso, infelizmente", lemanta Ahmet. "Acima de tudo, e isso foi confirmado mais uma vez, mas, mesmo assim, os reflexos estão mudando pouco a pouco porque a situação econômica é realmente muito complicada para muitas pessoas. A AKP [partido de Erdogan] tem mais de 100 mil membros, e todas essas pessoas recebem ajuda do Estado. E ajuda pública por meio das fundações da legenda. Portanto, essa população dificilmente é afetada pela situação econômica porque é subsidiada pelo Estado", denuncia o advogado.

"Na Turquia atual, sabemos que desde a chegada ao poder de Erdogan, o partido AKP recebe das empresas 20% do preço dos contratos públicos. Esse dinheiro vai para fundações, para fundos secretos e é distribuído para membros do partido, para seus parentes e para seu eleitorado", afirma.

"E é por isso que o eleitorado da oposição, o cidadão comum, é diretamente afetado pela situação econômica. Mas os ativistas, os membros do AKP e suas famílias, não são afetados porque recebem, além de seus salários, ajuda direta não declarada do Estado", conclui Kiraz.

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