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Como a capital mundial dos diamantes virou ponto de entrada da cocaína na Europa

Com pouco mais de 500 mil habitantes, Antuérpia é mundialmente conhecida como a capital dos diamantes. No entanto, o mercado que tem chamado a atenção das autoridades europeias não está ali no centro histórico, mas na sua costa. Apenas em 2022, foram apreendidas 110 toneladas de cocaína no porto da cidade, o que faz da Bélgica o país com maior quantidade de apreensões de droga no continente.

Antuérpia é conhecida em todo o mundo pelo histórico mercado de diamantes. Mas, nos últimos anos, é o tráfico de cocaína que tem chamado a atenção das autoridades.
Antuérpia é conhecida em todo o mundo pelo histórico mercado de diamantes. Mas, nos últimos anos, é o tráfico de cocaína que tem chamado a atenção das autoridades. AP - Virginia Mayo
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Cristiane Capuchinho, da RFI

As 110 toneladas de cocaína recuperadas na Antuérpia são um número recorde. E essa é apenas uma parte de um grande mercado: as autoridades estimam que só um décimo de toda a cocaína enviada para o porto seja apreendida. 

O enraizamento do fluxo de narcotráfico na cidade tem sido sentido no noticiário policial. Nos últimos meses, a cidade registrou mais de 50 explosões e tiroteios entre grupos ligados ao comércio de drogas.

Um caso trágico chamou a atenção da Europa recentemente. Uma menina de 11 anos foi morta com cinco tiros dentro de casa em janeiro, após homens encapuzados metralharem o imóvel. Na ocasião, o prefeito Bart De Wever admitiu que a cidade enfrentava “uma guerra do tráfico.”

Uma entrada ampla e bem conectada

Quase toda a cocaína que entra na Europa chega por via marítima, em geral, pelos grandes portos comerciais do continente. Como para qualquer outra mercadoria, a logística é um ponto-chave na cadeia da droga, como explica Isabela Vianna Pinho, pesquisadora da Universidade Federal de São Carlos e do Instituto Dinamarquês de Estudos Internacionais. 

"Os portos têm enormes fluxos diários de mercadoria, apresentando uma grande dificuldade para as forças de segurança fiscalizarem tudo isso, enquanto têm de lidar com a pressão dos atores econômicos para que não haja atrasos nas mercadorias", aponta a socióloga, que estuda a circulação da cocaína. 

Visão geral do Terminal Europa, em 7 de outubro de 2022, antes do lançamento oficial de sua renovação, no Porto de Antuérpia.
Visão geral do Terminal Europa, em 7 de outubro de 2022, antes do lançamento oficial de sua renovação, no Porto de Antuérpia. AFP - JONAS ROOSENS

Com 130 km², o porto de Antuérpia é o mais extenso da Europa e abriga um fluxo anual de mais de 200 milhões de toneladas de mercadorias. Além disso, a cidade, na fronteira com a Holanda, está interligada a uma malha rodoviária e ferroviária instalada para escoar tudo isso aos países do norte da Europa.

Os atrativos logísticos se unem a fatores como a existência de um mercado próspero de ouro e diamante, duas mercadorias que facilitam a lavagem de grandes somas de dinheiro. Essas características tornaram o porto um "monstro do crime organizado", como escreve o jornalista belga especializado em crime Mitchell Prothero

No porto de Antuérpia, os contêineres de frutas têm sido alvo importante do tráfico. Frágil, a mercadoria tem urgência para saída da infraestrutura, o que dificulta a fiscalização. Só no ano passado, as forças policiais encontraram cocaína no porto belga no meio de cargas de cacau, de bananas e de abacates.

Caminhões carregando contêineres fazem fila no terminal de Maasvlakte, no porto de Rotterdam, Holanda, em 9 de janeiro de 2023. A cocaína está se espalhando a um ritmo alarmante pela Europa, em grande parte pelos portos internacionais de Antuérpia e Roterdã. O anúncio de apreensões maciças pode esconder uma verdade maior, a de que os cartéis sulamericanos estão jogando cada vez mais cocaína no mercado europeu.
Caminhões carregando contêineres fazem fila no terminal de Maasvlakte, no porto de Rotterdam, Holanda, em 9 de janeiro de 2023. A cocaína está se espalhando a um ritmo alarmante pela Europa, em grande parte pelos portos internacionais de Antuérpia e Roterdã. O anúncio de apreensões maciças pode esconder uma verdade maior, a de que os cartéis sulamericanos estão jogando cada vez mais cocaína no mercado europeu. AP - Peter Dejong

Contudo, este não é o único ponto de entrada da droga, e nem é necessariamente o maior, alerta Gabriel Feltran, pesquisador de sociologia do crime e professor na SciencesPo Paris.

"O que o volume de apreensão mostra não é necessariamente a entrada, pode ser sinal da capacidade de controle em um porto, de operações de segurança. Pode estar entrando até mais por outros países, e com menos fiscalização", afirma.

Em 2021, o porto com maior quantidade de cocaína apreendida tinha sido o de Roterdã, na Holanda, não muito longe de Antuérpia.

"O tráfico vai se moldando, dependendo se um porto está mais fácil de entrar, dependendo da fiscalização, de como os grupos criminosos estão se organizando", reforça Vianna Pinho.

Mercado em expansão

Para além do porto da Bélgica, as apreensões de cocaína no bloco europeu não param de crescer, de acordo com o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (OEDT).

"Os volumes excepcionalmente grandes de apreensão indicam um fluxo crescente de cocaína que agora ameaça toda a União Europeia", alertou em fevereiro o diretor do observatório europeu OEDT, Alexis Goosdeel.

Em 2010, a polícia apreendeu 100 toneladas de cocaína no continente. Dez anos mais tarde, o total já tinha mais do que dobrado.

O mercado da cocaína é bilionário. O OEDT estima que o comércio da droga gire em torno de US$ 10,5 bilhões (o equivalente a R$ 56,8 bilhões) apenas na Europa.

"A cocaína é uma das mercadorias que mais se valoriza no mundo nessa cadeia de valores. Um quilo de cocaína que sai por cerca de US$ 300 da Colômbia, quando chega na Europa, esse quilo vai valer de US$ 70 mil a US$ 180 mil", aponta o professor da SciencesPo.

Dos Andes à União Europeia

A maior parte dessa cocaína é cultivada nos países andinos: Colômbia, Peru e Bolívia, aponta o relatório mais rercente do mercado mundial de drogas publicado pelo Escritório das Nações Unidas de Combate às Drogas e ao Crime.

Mas, das áreas de produção até o consumidor final europeu, o trajeto é longo e passa, frequentemente, pelos portos do Equador e do Brasil.

O Brasil, o Equador e o México (em roxo) são os países com maior apreensão de cargas de cocaína entre 2016 e 2020. Em rosa, outros países por onde a droga circula. Em amarelo, são destacados os principais produtores: Colômbia, Bolívia e Peru. Os dados são do Relatório Mundial de Drogas de 2022, da ONU
O Brasil, o Equador e o México (em roxo) são os países com maior apreensão de cargas de cocaína entre 2016 e 2020. Em rosa, outros países por onde a droga circula. Em amarelo, são destacados os principais produtores: Colômbia, Bolívia e Peru. Os dados são do Relatório Mundial de Drogas de 2022, da ONU © UNDOC

O Brasil é um entreposto neste fluxo, aponta a socióloga Vianna Pinho. No caminho brasileiro, a cocaína costuma entrar no país em pequenos aviões e é levada até os portos por caminhões, de acordo com informações da Polícia Federal na Europol. 

Na tentativa de fugir da fiscalização e ampliar seus lucros, as organizações criminosas multiplicam os caminhos e as estratégias de envio da droga. As maiores apreensões ainda acontecem no porto de Santos, em São Paulo, mas a cada ano cresce o volume apreendido em Paranaguá (PR), Salvador (BA) e no Rio de Janeiro (RJ). 

Vianna Pinho, que pesquisa a rota de saída de cocaína pelo porto de Santos, conta que táticas como a de envio de droga no corpo de tripulantes, a chamada "mula", ou de embarque da droga a partir de barcos pequenos, que atracam no navio de carga, ficaram no passado com o aumento do comércio transnacional.

Para o envio de grandes quantidades, o uso de mergulhadores tem crescido. São mergulhadores treinados que instalam a droga no casco do navio, em áreas muito abaixo da linha do mar. A estratégia permite carregar centenas de quilos, sem o risco de passar pela fiscalização do porto. 

Mas as apreensões feitas ainda se concentram em envios por contêiner, sejam quantidades escondidas na estrutura do contêiner, sejam colocadas sobre a mercadoria, ou ainda escondidas em meio à mercadoria.

Aumento de oferta e de consumo

O crescimento da oferta do pó branco na Europa tem reduzido seu preço para o consumidor final. Essa diminuição de custo tem consequências para o aumento do consumo, aponta o sociólogo Gabriel Feltran.

Segundo o observatório OEDT, 3,5 milhões de europeus entre 15 e 64 anos dizem ter usado a droga nos últimos 12 meses. E mais de 14 milhões afirmam já ter consumido cocaína durante a vida.

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