Regulamentar mercados ilegais deveria ser prioridade na segurança pública, analisa sociólogo
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A prioridade do Ministério da Justiça para reduzir a força dos grupos criminosos no Brasil deveria ser a regulamentação dos mercados ilegais de drogas, de armas e de carros, analisa Gabriel Feltran, pesquisador em sociologia do crime no Centro Nacional de Pesquisas Científicas da França (CNRS) e professor da SciencesPo Paris. No entanto, esse tema está fora da pauta do novo governo, que assume com o desafio de coordenar uma força policial cada vez mais insubordinada e atuando acima dos órgãos de controle.
Cristiane Capuchinho, da RFI
O número alto de homicídios, o poder crescente de facções e milícias com dinheiro dos mercados ilegais e a superlotação das penitenciárias são três dos grandes problemas de segurança pública que o governo federal tem a enfrentar no Brasil. Entretanto, a discussão que tem alimentado o noticiário em torno do Ministério da Justiça e da Segurança Pública é a liderança e o controle das polícias.
O problema, aos olhos do sociólogo Gabriel Feltran, é o enorme poder e autonomia dessas forças, que ameaçam governos escolhidos democraticamente.
“Essas forças de segurança, por terem armas, por terem orçamentos muito grandes e por terem capilaridade social, por estarem presentes na vida cotidiana das pessoas e terem legitimidade para uma parte da população, mandam muito mais do que o governo”, analisa o sociólogo em entrevista à RFI.
Nos últimos anos, os motins de policiais estaduais contra governadores e, mais recentemente, a ação da Polícia Rodoviária Federal ao fazer bloqueios de estradas durante a eleição, contra as determinações do Tribunal Superior Eleitoral, indicam o nível de insubordinação desses grupos.
Coordenar uma política politizada e sem controle
O pesquisador sublinha que o Ministério da Justiça e da Segurança Pública, sob o comando de Flávio Dino (PSB), terá um desafio imenso na relação com as polícias estaduais (militares e civis).
“Vemos que as polícias têm se tornado sujeitos políticos. E não apenas porque elas elegem senador, governador, deputado federal, vereador… Mas também porque elas têm muita influência, e exercem influência até no Ministério Público que deveria controlá-las”, assinala o sociólogo.
Durante o novo governo, as três principais forças policias do país, de São Paulo, do Rio de Janeiro e de Minas Gerais, são comandadas por governos opositores e estão “ligadas à extrema direita e ao bolsonarismo”, afirma o professor.
“Essas polícias são muito ideologizadas hoje e muito ligadas à extrema direita. Então temos um governo de centro-esquerda que vai tentar organizar um plano federal de segurança pública executado nos estados por grupos da extrema direita. Não é um desafio nada simples”, indica.
Ao longo dos anos, as forças policias têm defendido sua atividade de maneira independente do controle social. Durante o governo de Jair Bolsonaro, o discurso do governo federal era de defesa dessa autonomia policial, mesmo em ações fora da lei. O então presidente chegou a parabenizar policiais do Rio de Janeiro após uma chacina com 22 mortos na Vila Cruzeiro.
"Hoje, 99,2% dos homicídios cometidos por policiais são imediatamente arquivados pelo Ministério Público sem nenhuma investigação", cita Feltran.
Diante desse cenário, o especialista critica o silêncio do novo governo para atacar o problema. Para o sociólogo, Lula e seu governo precisam definir muito claramente os princípios fundamentais da área de segurança pública, "para ter uma polícia mais eficiente, mais efetiva e mais democrática".
“Eles têm de se tornar referências para os corpos policiais estaduais de qual é a direção em que a nossa política de segurança vai ser feita a partir de agora. E eu não vejo isso acontecendo”, aponta.
Quebrar as cadeias de valor que alimentam facções criminosas
O pesquisador considera que a prioridade do novo governo na área deveria ser o de regulamentar os mercados ilegais, visando quebrar as cadeias de valor que alimentam facções criminosas, milícias e policiais corruptos no Brasil.
O objetivo é criar regras de transporte e comercialização para os principais produtos hoje vendidos de maneira criminosa: drogas, armas e carros. A regulamentação do mercado, ainda que em parte, tira da mão dos grupos criminosos o controle.
Como exemplo, Feltran indica a experiência “muito bem-sucedida e pouco discutida” da regulamentação dos desmanches de automóveis em São Paulo. A lei, aprovada em 2014, estabelece regras para o desmonte e a venda de peças soltas, que são rastreadas. “Com isso, uma parcela gigantesca daquele mercado criminal foi embora. E o roubo de carros caiu em cerca de 40%”, detalha.
“Os presidentes do México e da Colômbia estão se reunindo para discutir seriamente o tema em relação a drogas e outros mercados ilegais”, destaca o sociólogo. No entanto, o tema está longe das mesas de discussões oficias no Brasil.
Solução de homicídios e sistema carcerário
Os outros dois nós centrais a serem desatados para reduzir a violência são a solução de homicídios e a reforma do sistema penitenciário, que hoje é punitivista.
Gabriel Feltran lembra que oito em cada dez assassinatos no Brasil não são resolvidos pela polícia atualmente. A alta taxa de não solução (85%) do Estado deixa espaço para que outros grupos façam o trabalho e, assim, tomem conta dos territórios. Nas periferias brasileiras, as facções fazem a investigação de cada caso, encontram os responsáveis e punem os autores, em tribunais dos crimes.
"Com isso, o Estado brasileiro perde sua soberania. Quem decide quem vive, quem morre e quem vai ser punido por matar alguém nesses territórios são as facções", observa o sociólogo. "O Estado precisa recuperar sua soberania nos territórios e a melhor forma de fazer isso é esclarecendo os homicídios."
O eixo final para reduzir o poder dos grupos criminosos é limitar a mão de obra disponível, e para isso é preciso reformar o sistema punitivista brasileiro.
A numerosa prisão de jovens em cadeias superlotadas sustenta a entrada desses em facções e os mergulha no sistema criminal, em vez de recuperá-los. "É preciso desencarcerar seletivamente aquelas pessoas que não são perigosas ao convívio social e que são trabalhadoras baixas desses mercados ilegais transnacionais", defende.
"Se o menino tem 13 anos e está vendendo droga à noite em uma esquina, ele tem que ser protegido e não punido pela sociedade. Porque, aos 13 anos, se ele está vendendo drogas, é porque tem muita coisa errada na vida dele que precisa ser corrigida e isso também é responsabilidade do Estado", pondera Feltran.
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