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Jogos Olímpicos México 1968: Entre a repressão e a luta pela democracia

Os XIX Jogos Olímpicos realizados no México, de 12 a 27 de outubro de 1968, foram os primeiros a serem sediados por um país "em desenvolvimento". Uma longa luta precedeu a concessão da Olimpíada ao México. Em 12 de outubro de 1968, mais de 5.500 atletas de 112 países participaram da abertura do evento. Além do entusiasmo olímpico, um clima de repressão e revolta reinava no país. Dez dias antes da inauguração dos Jogos, o governo mexicano havia recrutado militares para reprimir brutalmente os protestos estudantis.

Em 16 de outubro de 1968, os atletas americanos Tommie Smith, ao centro, e John Carlos erguem as mãos com luva preta durante a execução do hino americano, em protesto contra a discriminação racial naquele país. Smith recebeu o ouro e Carlos o bronze na corrida dos 200m nos Jogos Olímpicos do México. O medalhista de prata, o australiano Peter Norman, está à esquerda. Esta é a imagem que o mundo guardaria dos Jogos Olímpicos do México.
Em 16 de outubro de 1968, os atletas americanos Tommie Smith, ao centro, e John Carlos erguem as mãos com luva preta durante a execução do hino americano, em protesto contra a discriminação racial naquele país. Smith recebeu o ouro e Carlos o bronze na corrida dos 200m nos Jogos Olímpicos do México. O medalhista de prata, o australiano Peter Norman, está à esquerda. Esta é a imagem que o mundo guardaria dos Jogos Olímpicos do México. AP - Topham Picturepoint
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Braulio Moro, serviço em espanhol da RFI

Cinco anos antes, em outubro de 1963, a mídia internacional noticiava que a capital mexicana havia sido escolhida entre quatro concorrentes: Detroit (Estados Unidos), Lyon (França) e Buenos Aires (Argentina) disputavam a realização do evento esportivo mais importante do mundo. O então presidente mexicano Adolfo López Mateos observou que era “um reconhecimento mundial do povo mexicano".

Localizada a 2.250m acima do nível do mar, a altitude da capital mexicana fora um obstáculo por duas décadas devido ao seu possível efeito negativo sobre os atletas.

Antes da inauguração da Olimpíada, o México recebeu muitas críticas de vários países, pois as obras de infraestrutura necessárias para o evento estavam bastante atrasadas. Apesar de tudo, em 12 de outubro de 1968, a abertura da Olimpíada marcou uma realização do governo.

Arturo Anguiano, doutor em sociologia e que em 1968 tinha 20 anos, lembra que durante três anos “o governo investiu muitos recursos preparando todas as condições para a Olimpíada. Ele queria apresentar uma iniciativa um tanto original. Por um lado, considerando que se tratava da Olimpíada da Paz e, por outro lado, adicionando um toque mexicano que criaria, ao mesmo tempo em que a façanha olímpica, um movimento cultural chamado ‘a Olimpíada Cultural’”.

"Na época, o México era o que Mario Vargas Llosa mais tarde chamaria de uma ditadura perfeita, e que escritores como o mexicano José Revueltas, que mais tarde participaria do movimento e seria preso, consideravam uma “ditadura disfarçada”", acrescentou.

O país vivia então o que é conhecido como o “milagre mexicano”, com taxas de crescimento econômico acima de 6% ao ano, inflação baixa e estabilidade da moeda, o peso mexicano. Sob o controle total do Partido Revolucionário Institucional (PRI), os protestos sociais foram invariavelmente silenciados ou reprimidos.

“O movimento estudantil de 1968 criaria uma cisão política no país. Não foi um movimento nascido do desespero. O México teve taxas de crescimento muito altas naquele ano, considerada como a época de ouro da economia mexicana. A universidade permitia um processo de ascensão social, sendo um setor extremamente sensível para o resto da sociedade, no momento que os alunos se rebelaram. Refletia o que as pessoas queriam: a democracia, pois gostariam que o seu ponto de vista fosse levado em conta”, explica outro participante do movimento estudantil, Sergio Rodríguez, vinculado à UNAM (Universidade Nacional Autônoma do México).

Três meses antes do início dos Jogos Olímpicos, em julho, um confronto entre alunos de dois colégios foi reprimido pelos granaderos, a tropa de choque criada trinta anos antes. Estudantes das principais instituições de ensino, a Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) e o Instituto Politético Nacional (IPN), se organizaram e fizeram uma manifestação no dia 30 de julho. Soldados do Exército invadiram uma escola da UNAM, no coração da Cidade do México, usando uma bazuca para arrombar a porta.

Um militar mexicano acerta uma coronhada na cabeça de um manifestante na Cidade do México, em 29 de julho de 1968. (AP Photo)
Um militar mexicano acerta uma coronhada na cabeça de um manifestante na Cidade do México, em 29 de julho de 1968. (AP Photo) © AP Photo

Foi nessa época que o movimento estudantil se espalhou por todas as escolas. A marcha de 30 de julho liderada pelo Reitor da UNAM, Javier Barrios Sierra, seria o sinal de mobilização em todas as escolas da UNAM.

Entre a repressão e a luta pela democracia

O movimento estudantil mexicano parece ser um eco do que aconteceu em outros países como França, Alemanha, Japão, Brasil, Estados Unidos e Itália. Este foi também o ano da ofensiva liderada pelas tropas norte-vietnamitas contra a invasão americana do Vietnã; o ano dos assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy nos Estados Unidos, quando ganhou força o movimento dos Panteras Negras em defesa dos direitos civis da população afrodescendente; e também o ano da invasão da Tchecoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia sob o comando de Moscou. O movimento estudantil se desenvolveu a partir das comissões de luta e do Conselho Nacional de Greve (CNH na sigla em espanhol).

Um mês antes do início dos protestos, o correspondente do jornal francês Le Monde, Claude Kiejman, chegou ao México e viu como o governo estava reprimindo os estudantes. “Cheguei em junho e aos poucos esse movimento estudantil foi se fortalecendo com a repressão, que começou bem rápido, e ficou muito forte. Lembro-me de certas manifestações onde havia pessoas de todas as camadas sociais, principalmente da classe média e estudantes”, testemunha.

Em 1º de agosto, o reitor da Universidade, Javier Barrios Sierra, liderou uma manifestação de mais de 80.000 estudantes para defender a autonomia das universidades e denunciar a repressão do governo. “Esta manifestação não seria apenas pela defesa da autonomia. Nossa bandeira também era a reivindicação de liberdade para os estudantes presos. Sem exagerar, podemos dizer que não era apenas o destino da Universidade e da Politécnica que estava em jogo, mas também as causas mais importantes, as mais caras ao povo mexicano", analisa.

O reitor da UNAM, Javier Barrios Sierra, no centro, juntamente com outras autoridades universitárias e estudantes iniciam na quinta-feira, 1º de agosto de 1968, na Cidade do México, uma marcha de 5 quilômetros para protestar contra a violação da autonomia da universidade mexicana pelas Forças Armadas. Nenhum incidente ocorreu.
O reitor da UNAM, Javier Barrios Sierra, no centro, juntamente com outras autoridades universitárias e estudantes iniciam na quinta-feira, 1º de agosto de 1968, na Cidade do México, uma marcha de 5 quilômetros para protestar contra a violação da autonomia da universidade mexicana pelas Forças Armadas. Nenhum incidente ocorreu. © AP Photo

Em 1º de setembro, um mês antes dos Jogos Olímpicos, o presidente Gustavo Díaz Ordaz, durante seu briefing anual sobre a situação do país, disse: “Fomos tolerantes, até criticamos os excessos. Mas tudo tem limite e também não podemos permitir que a ordem jurídica continue irremediavelmente quebrada, aos olhos de todos. Foi o que aconteceu ".

“Para o governo mexicano, era impensável permitir que essas manifestações estudantis continuassem”, observa Thierry Terret, historiador esportivo especializado em Jogos Olímpicos. “A Guerra Fria continuou a moldar os Jogos e pela primeira vez a Alemanha foi representada por duas delegações, mas era sobretudo a questão racial que a política impunha a todos”, especifica.

No dia 2 de setembro, durante coletiva de imprensa, a CNH respondeu ao presidente. "Todos os parágrafos em que o presidente faz alusão explícita e implícita ao fato de que os objetivos do movimento estudantil são sabotar a Olimpíada, o CNH quer que ele entenda que a posição que consiste em tentar sustentar que não há problemas e que o que existe são conspirações, é muito antigo e ultrapassado. O movimento, primeiro estudantil e agora popular, que começou em 23 de julho deste ano, tem objetivos e causas muito concretas que nada têm a ver com as Olimpíadas", disse. Para o governo, tal desafio era inaceitável.

Soldados se protegem atrás de um caminhão militar durante confrontos entre forças militares e o grupo paramilitar 'Batallón Olimpia' durante o massacre de estudantes do sexo feminino em 2 de outubro de 1968, em Tlatelolco, Cidade do México, 10 dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos (AP Photo )
Soldados se protegem atrás de um caminhão militar durante confrontos entre forças militares e o grupo paramilitar 'Batallón Olimpia' durante o massacre de estudantes do sexo feminino em 2 de outubro de 1968, em Tlatelolco, Cidade do México, 10 dias antes da abertura dos Jogos Olímpicos (AP Photo ) © AP Photo

“Todos pensaram em meados de setembro que poderia haver uma forte repressão porque não queriam que houvesse protesto em 12 de outubro, data de abertura da Olimpíada. Mas nunca pensamos que haveria tamanha repressão”, sublinha Arturo Anguiano.

Em meados de setembro, o Exército ocupou a Universidade, onde permaneceu até 27 do mesmo mês. Na quarta-feira, 2 de outubro, a manifestação da qual participavam cerca de 8.000 pessoas em Tlatelolco foi reprimida com violência pelo Exército.

“Lembro-me especialmente da violência”, diz Claude Keijman, correspondente do jornal Le Monde. “Acho que escrevi no meu artigo que foi um massacre e que havia um clima de guerra. Nesta praça, a Plaza de las Tres Culturas, (a Praça das Três Culturas), havia homens, mulheres, crianças. E foi como uma armadilha. Quando um membro da CNH começou a falar, vimos um helicóptero no céu, tanques e também homens de luvas brancas fazendo sinais”, diz.

A repressão, segundo a imprensa mexicana, deixou 29 mortos. A Embaixada dos Estados Unidos e a sua agência de espionagem, a CIA, falariam em mais de 100 mortos.

O movimento estudantil provocava manifestações de apoio em todo o mundo. Em coletiva de imprensa em 3 de outubro de 1968, integrantes da CNH que escaparam da prisão deram alguns exemplos. “As petições dirigidas ao governo mexicano pela anistia de presos políticos vêm de praticamente todo o mundo, desde organizações estudantis até intelectuais conhecidos como Bertrand Russell, John Dee Bernal, Jean-Paul Sarte, Mario Vargas Llosa e todo o grupo latino de Paris”, cita.

Em 12 de outubro de 1968, os 19º Jogos Olímpicos do México foram abertos em meio a um forte sistema de segurança. Quatro dias depois, na final dos 200m, os americanos Tommie Smith e John Carlos ficariam em primeiro e terceiro lugares, respectivamente. No momento da premiação e enquanto tocava o hino de seu país, os dois atletas ergueram os punhos direito e esquerdo, respectivamente, com luvas pretas, símbolo da luta dos Panteras Negras contra a segregação racial e pelos direitos civis nos Estados Unidos. Esta é a imagem que a história guardaria dos Jogos Olímpicos do México.

Ao retornarem aos Estados Unidos, os atletas Tommie Smith e John Carlos perderam suas medalhas pelos 200m e os seus empregos.
Ao retornarem aos Estados Unidos, os atletas Tommie Smith e John Carlos perderam suas medalhas pelos 200m e os seus empregos. © Bettman / GettyImages

Ao retornarem aos Estados Unidos, os dois atletas perderam suas medalhas e seus empregos. Anos depois, em 2012, quando perguntado se o seu gesto teria sido um ato de ativismo, Tommie Smith respondeu: "Foi um ato de ativismo, algo tinha que ser feito. Foi feito por uma razão: a justiça social ignorada pelos homens, aqueles que não acreditavam nos direitos humanos, ou que não acreditavam na necessidade de refletir sobre o tratamento dos direitos humanos. E acho que o pódio da vitória foi muito importante porque foi o auge do que eu teria que fazer e o que as pessoas precisariam ver antes de acreditar que realmente conseguiríamos,” completa.

“O principal símbolo do Comitê Olímpico era uma pomba da paz, de Pablo Picasso. O que os estudantes fizeram depois da repressão, e principalmente depois de 2 de outubro, foi não deixar uma única pomba da paz que não tivesse tinta vermelha no peito, simbolizando o sangue das pessoas que foram massacradas”, lembra Arturo Anguiano.

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