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“O século 20 nos contou a fábula de que o Brasil era uma utopia dos trópicos”, diz Felipe Bragança

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Único longa-metragem brasileiro em competição ao principal prêmio do Festival Biarritz-América Latina, "Um Animal Amarelo" trata da busca das identidades brasileiras e dos traumatismos deixados pela colonização e a escravidão. Em entrevista à RFI, o diretor do filme, Felipe Bragança, fala sobre a sua “odisseia” cinematográfica filmada entre Brasil, Moçambique e Portugal.

Cineasta Felipe Braga
Cineasta Felipe Braga © Captura de tela
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Como fazer um filme em um país que perdeu sua identidade? Esse é o questionamento do personagem Fernando, cineasta fracassado, protagonista de "Um Animal Amarelo". Ele herdou uma estranha maldição que o leva a buscar pedras preciosas em Moçambique e a se tornar empresário e amante de mulheres misteriosas em Portugal. Enquanto isso, seu país sucumbe em um desastre político profundo.

Esse é o ponto de partida do longa de Felipe Bragança, que fez sua estreia mundial no Festival de Roterdã em janeiro, ganhou 5 prêmios recentemente no Festival de Gramado, no Brasil, e que deixou o público desnorteado em sua primeira projeção na França, no festival Biarritz-América Latina.

Cicatrizes abertas

Cheio de referências históricas, o filme causa um certo desconforto com a aparição de um “Animal Amarelo”, um ser cabeludo e híbrido que, de acordo com Bragança,"representa o acúmulo de memórias, de fantasmas, de coisas que são enterradas e que um processo histórico tenta esconder". Esse animal incomoda porque “ele representa a impossibilidade do esquecimento”.

O diretor define essa ambiciosa saga, que atravessa a história de três países lusófonos, como “uma jornada através de várias camadas do tempo”, cujo objetivo é trazer à tona as ruínas coloniais que fazem do Brasil um país com grandes cicatrizes abertas, longe da utopia que tentamos encarnar”.

“O Brasil atravessou o século 20 construindo um certo imaginário de que haveria uma harmonização entre diversas culturas: africanas, ibéricas e indígenas. Em algum momento, o século 20 nos contou essa fábula, essa utopia de uma democracia racial, como uma utopia dos trópicos”, constata o cineasta, acrescentando que o século 21 deixou claro que isso não aconteceu, “que o país nunca se olhou, nunca se entendeu e nunca aceitou sua complexidade”.

Para Felipe Bragança, um dos desafios atuais é justamente olhar essa questão de frente e entender que isso não aconteceu e que talvez seja impossível de acontecer. “O fascismo que está no poder no Brasil hoje é justamente uma reação do imaginário de uma elite branca que quer impedir qualquer possibilidade do país finalmente olhar para seu próprio corpo e entender nossas origens, nossas possibilidades de futuro”, acrescenta.

O lugar do homem branco

À pergunta se Fernando, o cineasta, personagem central de "Um Animal Amarelo", não seria ele próprio, Bragança responde: “O filme atravessa questionamentos da minha geração, da minha geração de cineastas. Esse lugar do pensamento dos intelectuais de esquerda, centralizados historicamente nessa posição do homem branco... O filme é uma destruição, um desafio a minha própria geração. O personagem não sou eu, são várias pessoas da minha geração”.

Para ele, uma das crises por que o Brasil está passando é justamente uma crise de linguagem. “A dificuldade que a gente tem de enfrentar o fascismo do Bolsonaro, por exemplo, é uma certa afasia. Parece que o Brasil perdeu certa potência de linguagem que nos faria enfrentar esse tipo de simplificação fascista e visão do mundo”.

Isolamento brasileiro

A pouca presença de cineastas brasileiros nesta edição do Festival Biarritz-América Latina – levando em conta que o Brasil conquistou no ano passado 6 prêmios – se deve em grande parte à pandemia de Covid-19, o que, para Bragança, é um fato que tem o seu simbolismo.

“A irresponsabilidade com que o governo lidou com a pandemia vai se refletir em muitas coisas. O assunto de 'Um Animal Amarelo' são as ruínas desse país, as ruínas desse lugar do cinema brasileiro, que emerge de nós mesmos. Então, o Festival de Biarritz, muito atento ao cinema latino-americano, talvez expresse esse momento simbólico, já que o único longa brasileiro escolhido para a competição é justamente um filme que fala sobre essas ruínas. Biarritz expressa sim essa solidão”, conclui o cineasta.

"Um Animal Amarelo" é o quarto longa-metragem do jovem cineasta carioca que já tem uma trajetória consistente no cinema nacional. Roteirista de dois filmes de Karim Ainouz (O Céu de Suely e Praia do Futuro), muitos de seus curtas-metragens foram selecionados para os festivais de Cannes, Roterdã, Berlim e Sundance. 

Seu longa anterior, "Não Devore meu Coração", foi selecionado para o festival Sundance e para a Mostra Geração na Berlinale, em 2017. "Um Animal Amarelo" foi o filme de encerramento do IndieLisboa, o Festival Internacional de Cinema, e venceu no Festival de Gramado os prêmios de melhor roteiro, melhor atriz (a moçambicana Isabel Zuaa), melhor direção de Arte, Menção Especial Melhor Ator (Higor Campagnaro) e Melhor Filme pelo Júri da Crítica.

"Um Animal Amarelo" concorre ao Abrazo do melhor longa de ficção do Festival Biarritz-América Latina, que termina no próximo domingo, 4 de outubro.

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