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"Há uma rede simbólica tácita de censura no Brasil", diz Wagner Schwartz, que lança livro em Paris

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Em "A nudez da cópia imperfeita", lançado no Brasil pela editora Nós, o artista Wagner Schwartz revisita, reinventa e elabora o episódio vivido em 2017, quando um exército de robôs e aliados de Jair Bolsonaro usaram uma imagem de sua performance La Bête, inspirada na série Bichos, de Lygia Clark (1920-1988), apresentada no MAM. Retirada do contexto, a foto, onde a filha de uma amiga toca o corpo nu do artista, deflagrou um linchamento virtual sem precedentes e milhares de ameaças à sua vida.

O artista, coreógrafo, e escritor Wagner Schwartz.
O artista, coreógrafo, e escritor Wagner Schwartz. © Captura de tela
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No dia 26 de setembro de 2017, um artista brasileiro, Wagner Schwartz, fazia uma performance no Museu de Arte Moderna (MAM) de São Paulo. Inspirada na série Bichos, da artista visual Lygia Clark, a performance de Schwartz se chamava La Bête. Dentro da sala, uma amiga de longa data do artista, e também sua colega, Elisabeth Finger, estava presente com sua filha de quatro anos, que num determinado momento da apresentação toca o corpo do artista nu. Esse momento é captado numa foto que, tirada do seu contexto, é levada para a internet, multiplicada e transformada em milhares de ameaças de morte, num linchamento virtual, dentro e fora do Brasil.

O episódio é revisitado pelo artista Wagner Schwartz no livro "A Nudez da Cópia Imperfeita", com o qual acabou uma turnê pelo Brasil e que será lançado em Paris no dia 29 de maio, com leituras da atriz portuguesa Maria de Medeiros. "No livro eu falo sobre os efeitos desse contexto [do episódio], mas não exatamente sobre o fato, o fato já está, digamos, midiatizado, revelado, extrapolado em jornais no Brasil e no exterior", explica Schwartz que conversou com a RFI sobre a publicação.

RFI: Você cita a jornalista Eliane Brum, que diz que no Brasil a ficção está obsoleta, só existe realidade. É interessante porque o livro faz uma releitura poética e ficcional também de um momento seu e do momento brasileiro muito importante. E você faz menção ao "Memórias Póstumas de Brás Cubas", marcador do realismo brasileiro de 1881, de Machado de Assis. Você retoma a mesma ironia machadiana com essa proposta de "hiperrealismo", esse realismo que a jornalista que Eliane Brum fala...

Wagner Schwartz: Eliane Brum foi muito importante porque para mim e para o desenvolvimento dessa trama, porque eu, no momento em que fui atacado no Brasil, decidi não falar para nenhuma imprensa. Foi muito interessante o fenômeno de um dia ser, digamos, desconhecido pela imprensa e, no dia seguinte, ser procurado pelas maiores e mais importantes publicações do Brasil. Mas, na realidade, eles não queriam me entrevistar, eles queriam entrevistar alguém que não existia, que não era eu. E eu não podia dar entrevista em nome desse Wagner que não existia.

RFI: Quem era essa pessoa?

WS: Era uma pessoa inventada pela extrema direita e seus seguidores. Então eu não podia falar por ele. Eu só podia falar por mim. E naquele momento eu estava completamente machucado, não conseguia dar entrevista. Há uma rede simbólica tácita de censura hoje no Brasil que é extremamente preocupante.

RFI: Você foi linchado virtualmente. A cena foi tirada do contexto em que existia e foi disseminada em todo o país e fora dele, onde ouvimos os ecos. O diretor sueco Ingmar Bergman dizia que "a sombra da morte dá relevo à vida". Como você transformou o linchamento em vida nesse livro?

WS: Ainda pegando a linha da Eliane Brum, foi que ela entrou em contato comigo, um mês depois que tudo tinha acontecido e quando ela entrou em contato comigo, eu disse para ela que não conseguiria responder para ela naquele momento. Como ela fazia parte de um jornal [o El País], que tem uma estrutura de uma dinâmica diferente dos outros, ela me disse que podia esperar. E eu respondi no meu tempo essas perguntas para ela. A Eliane conseguiu me acompanhar e dar sentido esse momento e publicar o momento. Então ela foi a pessoa que conseguiu de alguma forma e talvez sem saber, mas cuidar da minha dor naquele momento, como uma jornalista sabe fazer. Foram muitas ameaças de morte. Ameaças de morte não são, claro, bonitas. São estrategicamente horrorosas e te criam uma sensação de medo que você, na realidade, não tem diariamente. No Brasil, nós nascemos com medo, nós andamos com medo na rua, mas essa sensação era elevada à máxima potência, porque eu não desacreditava delas, bastava uma para me tirar a vida.

RFI: Como foi a reação das instituições artísticas brasileiras a esse episódio?

WS: Elas se fecharam, eu acho. Eu acredito que elas tenham criado um programa ou uma programação que para um "não público", e é isso que para mim é o mais preocupante. Hoje me parece que as instituições de arte no Brasil em geral estão fazendo programações para quem não vai, para quem não visita essas instituições. (...) Se a gente vai aqui [em Paris] no Centro Pompidou, a gente sabe o que vai encontrar. Se a gente vai no Palais de Tokyo, a gente sabe que a gente pode encontrar, mas as instituições de arte brasileiras estão mais preocupadas com o que este "não público" pode ver, pode tomar consciência, do que com o próprio público que está lá para assistir. Então há uma rede simbólica tácita de censura hoje no Brasil que é extremamente preocupante. E como nós temos um governo hoje de esquerda no Brasil, toda uma equipe extraordinária de pessoas inteligentíssimas, capazes de lidar com esse desconforto do corpo, desse corpo que foi soterrado durante anos na nossa cultura. Nós temos mudanças nas leis, mas, institucionalmente, no mundo da arte, não há. O que há é uma desconfiança "progressista" sobre esses corpos. 

RFI: Você dedica o livro à pessoa que retirou a imagem da criança do Instagram e que deflagrou todo esse processo.

WS: Sem essa pessoa, esse livro não teria acontecido. E mudanças importantes na mentalidade brasileira talvez não teriam também acontecido. Antes eu acreditava que a arte fazia pouco seu papel social, político, e eu acredito hoje que quando ela é tirada do seu invólucro, ela pode causar transtornos, e bons transtornos na sociedade. Eu já agradeci Jair Bolsonaro publicamente ao MBL, que são figuras deploráveis do sistema político brasileiro, por terem feito o trabalho que os jornalistas antes não conseguiam fazer no Brasil, que era exatamente explorar a arte como ela é. Quando a gente é censurado, começa a se autocensurar também.

RFI: Você cita Laurie Anderson dizendo que "não é a bala que mata, é o buraco". Eu queria saber nessa censura progressista que você cita, qual é o buraco que mata, que corpos são permitidos e que corpos são excluídos?

WS: Olha, eu vou usar ainda mais a palavra agora, no momento em que talvez não deveria. Quando a gente é censurado, começa a se autocensurar também. E eu estou me programando para não fazer isso. Ontem, por exemplo, uma amiga me mandou um edital feito entre o consulado francês e o consulado alemão sobre um novo projeto de curadoria em que eles estão buscando temas relacionados à "felicidade". Então você já imaginou o tanto de artista "feliz" que a gente vai ver mandando seu projeto? Eu não tenho ideia de como um tema como esse possa surgir em um momento em que guerras estão acontecendo, em que nós vemos vítimas caindo na nossa frente, mudanças climáticas absurdas e censura acontecendo dentro e fora do Brasil.

RFI: Você começou esse livro através de um processo documental do episódio, e acabou derivando em determinado momento pela ficção. Por que?

WS: Eu optei pela ficção porque não queria nesse livro dar voz às vozes que já foram ouvidas. Eu precisei falar do que acontece do lado de dentro. Então é o meu corpo que fala, é a minha memória que fala e ela é ficcional porque o real tem o tempo dele. Tem um instante dele acontecer, e, a partir do momento que seu corpo se desconecta do real, do fato, é impossível que a ficção não seja essa ponte que cria esse elo entre de linguagem, entre um efeito e uma perspectiva do efeito. E eu precisei da ficção, porque na ficção existe mais espaço. O fato está encerrado. No passado ele é fixo, mas pela ficção e pela arte, o passado não é fixo, ele pode ser reestruturado.

*Para assistir o vídeo desta entrevista na íntegra, clique na foto.

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