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Milei deve fazer reformas rapidamente, sob risco de perder apoio de eleitores, diz especialista

Com 55,7% dos votos, a extrema direita de Javier Milei superou o peronista de centro-esquerda, Sergio Massa (44,3%). Mas a força dos votos contrasta com sua novata força política, sem estrutura partidária e frágil no Congresso para passar as reformas estruturais e as medidas mais polêmicas que prometeu. Outro grande vencedor é o ex-presidente Mauricio Macri, em quem Milei deve se apoiar para a governabilidade. A partir de agora começa um breve período de transição até a posse em 10 de dezembro. Até lá, o futuro presidente da Argentina vai precisar dar sinais claros ao mercado, inquieto quanto à promessa de dolarização da economia.

O presidente eleito da Argentina Javier Milei celebra vitória com apoiadores diante de sua sede de campanha, em Buenos Aires, Argentina, em 19 de novembro de 2023.
O presidente eleito da Argentina Javier Milei celebra vitória com apoiadores diante de sua sede de campanha, em Buenos Aires, Argentina, em 19 de novembro de 2023. AP - Natacha Pisarenko
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Márcio Resende, correspondente da RFI em Buenos Aires

Em frente ao hotel onde Javier Milei improvisou seu comitê de campanha, María Julia García, 39 anos, não consegue conter a emoção.

“A vitória de Milei renova a esperança na democracia. Estávamos presos num sistema, mas hoje demonstramos que podemos romper o sistema para voltar a começar a partir de outras bases. Hoje, Milei demonstrou que tem essa força e temos fé nele”, diz à RFI.

María Julia é de La Matanza, periferia empobrecida de Buenos Aires que, com dois milhões de habitantes, é o segundo município mais populoso do país, ficando atrás apenas da capital, e um bastião eleitoral do peronismo. Dos 135 municípios da província de Buenos Aires, Javier Milei ganhou em 108 e das 24 províncias argentinas, venceu em 21.

“Acredito que Milei fará as coisas bem feitas porque é um economista e o maior problema da Argentina é a economia”, confia María Julia.

Ao lado dela, Dana Durante, de 22 anos, sente que agora pode ter um futuro.

“Sinto a possibilidade de ter uma vida diferente. Com a vitória de Milei, poderei escolher a minha vida, planejar o meu futuro com liberdade. Sinto-me livre, finalmente”, celebra.

Dana é do município de Tigre, berço político de Sergio Massa que, nestas eleições, perdeu inclusive no seu próprio distrito.

“Será um caminho difícil porque sempre houve resistência à mudança, mas esta mudança será uma revolução da qual os argentinos nunca mais vão querer recuar. Nunca mais”, afirma à RFI.

Os milhares de eleitores de Milei não paravam de cantar slogans pela “liberdade” e contra “a casta política”, os dois lemas mais repetidos pelo futuro presidente durante a campanha. Através de um telão, seus apoiadores ouviram as primeiras palavras de seu discurso de vitória, que estava do lado de dentro do hotel.

“Hoje começa o fim da decadência argentina. Hoje começa a reconstrução da Argentina”, anunciou com convicção, sobre gritos e aplausos.

Presidente improvável

Com 53 anos, Javier Milei tornou-se o primeiro economista eleito presidente da Argentina ou, como ele anunciou ao vencer, o primeiro “libertário presidente do mundo”.

Com 55,7% dos votos, Milei superou Sergio Massa por 11,5 pontos. Mas a força dos votos contrasta com a sua novata força política, sem estrutura partidária e frágil no Congresso para passar as reformas estruturais e as medidas mais polêmicas que prometeu.

Ele conseguiu quatro ou cinco pontos a mais do que as sondagens previam. A disputa acirrada que todos os consultores mediram, na verdade, foi uma vitória por ampla margem. Isso porque os votos dos indecisos mostraram ser de oposição a Massa, inclinando-se por Milei nas 72 horas prévias ao pleito.

Foi a ascensão mais meteórica da história argentina para chegar à Presidência. Em apenas dois anos, o economista passou de participações em programas de TV e noticiários a deputado e, de deputado, a presidente.

Mas esse pulo tão rápido ao poder tem o seu preço: Milei não tem estrutura partidária, não tem nem quem preencha os cargos do seu governo e não tem experiência em nenhum posto executivo do Estado.

Por outro lado, foi justamente esse caminho de inexperiência que levou os argentinos a votarem por ele. Foi um voto popular de cansaço com o sistema partidário tradicional.

“Milei pode ser horrível, mas era a única ferramenta disponível para parar o kirchnerismo. Os que não gostam de Milei dizem que é um louco. Os que gostam também dizem que é um louco, mas que, justamente por isso, pode detonar o sistema. Entre a loucura e a cordura, o eleitor de Milei fica com a loucura porque a cordura não rompe o sistema”, explica à RFI o consultor político, Jorge Giacobbe.

Mas o voto na loucura é bem mais racional do que parece. O derrotado candidato Sergio Massa é o ministro de uma Economia com 142,7% de inflação, que ruma a 180% no ano, com 42% de pobreza, 60% de trabalhadores informais e com uma economia a ponto de implodir.

“Nenhum presidente da América Latina ganhou uma eleição com mais de 40% de inflação. O lógico é que o candidato governista, Sergio Massa, não fosse eleito. Massa chegou até esta instância em boa parte devido às dúvidas que Javier Milei gera, mas, mesmo assim, prevaleceu o desejo de mudança”, avalia a analista política, Ana Iparraguirre.

Uma nova era

Milhares de pessoas foram às janelas comemorar assim que Sergio Massa admitiu a derrota. Pelas ruas, houve duas concentrações principais: no obelisco do Centro de Buenos Aires, onde os argentinos se reúnem para festejar vitórias da seleção de futebol, e em frente ao hotel que Javier Milei transformou no seu comitê de campanha.

A maioria era de jovens que não encontram trabalho nem boa remuneração no meio do caos econômico do país.

Javier Milei discursou para a multidão e avisou que haverá resistência nas ruas com protestos de sindicatos e de organizações sociais.

“Agora vem uma luta contra um sistema corrupto e haverá resistência à mudança. Precisamos defender esta mudança porque foi através da vontade popular. Vamos resistir”, disse à RFI o jovem Franco Salinas, de 20 anos.

Franco é de Moreno, município da periferia de Buenos Aires, palco de uma onda de roubos que comoveu o país em setembro.

“Quanto tempo de descanso Javier Milei terá? Não sabemos quanto vai durar a lua-de-mel antes que os grandes problemas da economia comecem a comer o seu capital político. Sabemos que ele tem apoio popular, mas esse é o que mais rápido acabará quando as medidas começarem a afetar o bolso das pessoas. Por isso, a única forma que Milei tem de promover uma mudança é tomar medidas rapidamente”, observa Ana Iparraguirre.

“A situação na Argentina é crítica. Não há lugar para o gradualismo ou para decisões mornas. Não há lugar para meias medidas. Se não avançarmos rapidamente com as mudanças estruturais das que a Argentina precisa, caminharemos para a pior crise da nossa história”, advertiu Milei no discurso de vitória, alertando para decisões drásticas.

Apoiadores de Javier Milei, celebram sua vitória nas eleições presidenciais na Argentina, em 19 de novembro de 2023, em Buenos Aires.
Apoiadores de Javier Milei, celebram sua vitória nas eleições presidenciais na Argentina, em 19 de novembro de 2023, em Buenos Aires. AP - Rodrigo Abd

Transição de 19 dias

O presidente Alberto Fernández convocou o candidato eleito para uma primeira reunião nesta segunda-feira para tratar da transição. O contexto para os próximos 19 dias de transição é frágil.

“Eles nos estão deixando com uma economia destruída. Estamos no caminho da hiperinflação”, alertou Milei.

O derrotado ministro da Economia, Sergio Massa, disse que, a partir de agora, a responsabilidade é do presidente eleito.

“Os argentinos escolheram outro caminho. A partir de agora a tarefa de dar certezas e de transmitir garantias sobre o funcionamento político, social e econômico da Argentina é responsabilidade do presidente eleito”, disse Massa.

“Pedimos ao governo que seja responsável, que entenda que chegou uma nova Argentina e que se responsabilize ate o final do mandato”, advertiu Milei.

“Temos um presidente ‘outsider’, como acontece em outros países. Temos um país muito mais fragmentado, como acontece em outros países da região. Porém, temos uma situação econômica muito pior do que de outros países e temos um presidente com muito menos experiência política e contenção institucional do que os outros países vizinhos”, compara Iparraguirre.

Desafio de governabilidade

O ‘outsider’ que chegou ao poder, fazendo da crítica à “casta política” um lema de campanha, agora precisa da classe política para governar e aprovar medidas.

No Congresso, no entanto, o peronismo é a principal força e promete resistir. A vitória de Javier Milei foi contundente nas urnas, mas o novo governo será frágil no Legislativo. O partido do futuro presidente, A Liberdade Avança, tem apenas 38 dos 257 deputados e 7 dos 72 senadores e não tem governadores.

A prometida revolução liberal de Javier Milei vai depender de acordos e da ajuda de outras forças moderadas, assim como também dependeu, para derrotar o Peronismo, dos apoios do ex-presidente Mauricio Macri e da candidata derrotada no primeiro turno, Patricia Bullrich.

Um grande vencedor desta eleição é Macri. Foi graças a ele que Milei ganhou. Agora, depende desse apoio para garantir a governabilidade e nomes indicados pelo ex-presidente devem compor o novo governo.

Veredito dos mercados

Falta ainda o veredito dos mercados à vitória do candidato de extrema direita, que promete eliminar o déficit fiscal ao recortar o gasto público acima da meta do FMI e dolarizar a economia.

O processo é lento, requer dólares que a Argentina não tem, a aprovação dos Estados Unidos e uma mudança constitucional para a qual não existe maioria parlamentar.

Além disso, dois terços dos argentinos não querem a dolarização e nem mesmo Macri aprova.

“Acredito que dentro da equipe de Milei não haja acordos totais em pontos-chave. Por isso, ele ainda não anunciou o ministro da Economia. Por isso, certos anúncios de campanha deixaram de ser mencionados. No Congresso, Milei vai precisar do apoio de setores radicalmente opostos a algumas medidas como a dolarização”, aponta o analista político Patricio Giusto, diretor da consultora Diagnóstico Político.

Para levar tranquilidade aos mercados, Javier Milei terá de anunciar sua equipe econômica, mas qual será o grau de autonomia de um ministro, quando o próprio presidente é um economista que diz ter a receita para consertar o país.

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