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Dos protestos a uma nova Constituição: que Chile surgirá após fim do último vestígio de Pinochet?

O Chile terá a primeira Constituição da sua história a ser redigida por uma Assembleia eleita pelo voto popular. Durante os próximos dois anos, o país terá o desafio de escolher um modelo que combata a desigualdade sem perder a estabilidade econômica.

Um ativista mostra um cartaz a favor do "Aprovo" dias antes do referendo sobre uma nova constituição chilena em Santiago do Chile, em 22 de outubro de 2020.
Um ativista mostra um cartaz a favor do "Aprovo" dias antes do referendo sobre uma nova constituição chilena em Santiago do Chile, em 22 de outubro de 2020. REUTERS - IVAN ALVARADO
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Se no Estádio Nacional de Santiago funcionava o maior centro clandestino de tortura e morte da ditadura chilena, agora, 40 anos depois, o mesmo estádio foi a principal zona eleitoral para uma votação que decidiu acabar com o último vestígio do modelo imposto pelo general Augusto Pinochet em 1980.

Eram 21h20 quando, com apenas 20% dos votos apurados, o presidente Sebastián Piñera anunciou a arrasadora vitória da opção por uma nova Constituição.

"Hoje os chilenos expressaram livremente a sua vontade através das urnas, escolhendo a opção de uma 'convenção constituinte' que, pela primeira vez, terá plena igualdade entre homens e mulheres para poderem estabelecer uma nova Constituição para o Chile", disse Piñera no Palácio La Moneda, sede do Governo.

Imediatamente, na praça Baquedano, no centro de Santiago, o maior ponto de concentração, milhares de pessoas explodiram num grito de alegria entre fogos de artifício, bandeiras chilenas, buzinas e nenhum distanciamento social.

Na praça, um cartaz gigante despedia-se: "Adeus, general". Na parede de um edifício, uma projeção indicava a nova fase do país: "Renasce".

A festa só terminaria às duas da manhã de Santiago, uma hora depois do início do toque de recolher, estendido excepcionalmente para os chilenos poderem comemorar o histórico dia.

Uma maioria absoluta de 78,27% votou por uma nova Constituição que substitua a atual imposta por Pinochet. E, na segunda decisão do plebiscito, 78,99% dos chilenos escolheram que essa nova Constituição seja redigida por uma Assembleia Constituinte a ser eleita em abril, respeitando a paridade entre homens e mulheres.

Pela primeira vez em 200 anos de independência, o Chile terá uma Constituição, a sua quarta, redigida por uma Assembleia eleita pelo voto popular.

Havia expectativa por uma maciça votação que levasse mais legitimidade ao processo, mas, embora tenha sido a maior participação popular dos últimos oito anos, desde que o voto deixou de ser obrigatório, os 50,9% de participação apenas superaram os 49,2% de 2017, quando Sebastián Piñera foi eleito, até agora a maior participação registrada.

Igualdade de condições

O Plebiscito foi a consequência de um acordo político para conter a onda de protestos que, há um ano, luta nas ruas contra a desigualdade e por melhores serviços básicos.

Mal sabiam os que se revoltaram com o aumento no preço do metrô, em outubro de 2019, que aquela faísca conseguiria acabar com o mais sólido de todos os legados de Pinochet que exigia maiorias absolutas -nunca alcançadas- para ser alterado.

A Constituição neoliberal gerou o período de maior crescimento sustentável da história do país. Por um lado, atraía investimentos e permitia estabilidade econômica e política; por outro, criava desigualdade e mantinha as oportunidades restritas a um grupo de privilegiados.

"A sociedade chilena é terrivelmente hierarquizada. O que se quer aqui é achatar essa pirâmide social. Os chilenos querem uma sociedade mais horizontal", indicou à RFI a especialista em opinião pública Marta Lagos, diretora das consultoras Latinobarómetro e Mori.

"Fizemos muitos estudos sobre as aspirações dos chilenos e descobrimos que são muito moderadas. Não há nenhuma revolução por trás. Querem respeito, dignidade, solidariedade, igualdade no acesso às oportunidades", descreve.

A atual Constituição é vista como o ponto de partida para a desigualdade. Faz do direito à educação, saúde, água e aposentadoria serviços privados a serem contratados pelo cidadão.

Futuro indefinido

"Este plebiscito não é o fim. É o começo de um caminho que juntos todos deveremos percorrer para estabelecer uma nova Constituição para o Chile", anunciou o presidente Piñera, enfraquecido pelos protestos, com apenas 16% de popularidade.

O caminho que o Chile vai percorrer a partir de agora vai durar, pelo menos dois anos, período no qual o país viverá sob a indefinição.

"Teremos dois anos de um processo constituinte durante o qual haverá muita instabilidade e incerteza no Chile, precisamente porque já não haverá regras claras e todos vão querer aproveitar da situação para melhorar a sua posição relativa", explica à RFI o sociólogo e cientista político, Patricio Navia.

"A minha suspeita é que, eventualmente, surja uma reação conservadora do tipo Bolsonaro ou Álvaro Uribe (ex-presidente colombiano). Uma resposta autoritária de direita que prometa 'lei e ordem' contra a violência para que isto funcione", alerta Navia.

"Hoje, a maior probabilidade é que o Chile tenha continuidade de um governo de direita. Quatro das cinco principais opções para presidente são de direita. Pode acontecer de termos uma nova Constituição, desenhada com uma maioria de centro-esquerda, mas com um governo de direita", aponta Marta Lagos.

Emaranhado político

A eleição dos cidadãos que vão redigir a nova Constituição será em 11 de abril de 2021. A Assembleia deve começar em maio e terá até um ano (nove meses prorrogáveis por mais três) para concluir o trabalho.

O novo texto deverá passar por um novo plebiscito a ser realizado 60 dias depois que o presidente o convocar. Para essa nova decisão, o voto será obrigatório.

Esse novo plebiscito já não será conduzido por Sebastián Piñera. O seu mandato termina em março de 2022. Antes disso, em julho de 2021, os chilenos vão votar nas primárias presidenciais. Logo depois, em novembro, haverá eleições para presidente e para um novo Parlamento. Dada a paridade de forças e de opções, a eleição tende a ir ao segundo turno.

No total, os chilenos devem ir às urnas mais cinco vezes. E os constituintes vão conviver com as campanhas eleitorais para presidente e legisladores. Nesse emaranhado, a Assembleia Constituinte deve influenciar todas as campanhas e as eleições, por sua vez, podem ter influência nos constituintes.

"Todo o calendário é muito ruim", sintetiza Patricio Navia, professor professor da chilena Universidade de Diego Portales e da norte-americana New York University.

"O novo presidente e o novo Congresso estarão sentados à espera de que os constituintes terminem o seu trabalho. O processo constituinte vai avançar em paralelo com uma campanha presidencial. Os candidatos vão prometer coisas desmedidas que serão colocadas na nova Constituição, através dos próprios partidários constituintes. Tudo isso fará com que a Constituição termine num documento muito maximalista e difícil de ser cumprido", observa.

"A Assembleia Constituinte vai condicionar a campanha", concorda Marta Lagos. "A eleição presidencial será sobre a questão constitucional. É impossível que não seja assim. E será sobre as reformas na Saúde, Previdenciária e Tributária", antecipa.

"A Constituição pode gerar mandatos sem financiamento. Dirá 'pensões dignas para todos', mas, na verdade, não há como pagar. Há um risco, não trivial, de que o Chile termine numa situação substancialmente pior com a nova Constituição do que a que tem atualmente", adverte Patricio Navia.

 

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