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Murais homenageiam vítimas da Covid-19 nas ruas de Lima

Um casal de peruanos, artistas de rua, decidiu pintar os retratos das vítimas diretas e indiretas da pandemia de Covid-19 nos muros do bairro popular de Leticia, no distrito de Rimac, em Lima. A homenagem visa manter viva a memória desses peruanos.

Daniel Manrique pinta o retrato de Eustacia, vítima da Covid-19, em um muro do bairro de Leticia, em Lima.
Daniel Manrique pinta o retrato de Eustacia, vítima da Covid-19, em um muro do bairro de Leticia, em Lima. Crédit: Carla Magan
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Eric Samson, correspondente da RFI em Lima

No alto do morro de San Cristobal, o rosto de Eustacia sorri a todos transeuntes, entre eles Olinda Pineda, que mora ao lado do local onde o mural foi pintado. A costureira de 64 anos não escode sua emoção: “Eustacia era minha vizinha. Ela era idosa e precisava trabalhar na rua para ganhar seu pão. Quando vejo seu desenho, ele é tão parecido com ela que parece que nos olha com seu lindo sorriso. Parece até que ela não morreu”, conta Olinda à reportagem da RFI.

Daniel Manrique nasceu há 35 anos em Leticia, bairro popular de 10.000 habitantes. Além de artista de rua, ele é líder comunitário. No morro, as pessoas se cruzam no único mercado ou nas escadas que são o único acesso ao centro da cidade. É difícil manter o distanciamento social necessário e quase 50 pessoas morreram no bairro desde o início da pandemia no país.

O caso de Eustacia, que Daniel Manrique cruzava todos os dias na rua, é apenas um deles. “Ela não falava muito. Era uma mulher de poucas palavras que comunicava com seu lindo sorriso. Ela era camelô, vendia frutas secas e pipoca. Quando ela sorria para você, você se sentia na obrigação de comprar alguma coisa”, lembra o grafiteiro.

Heróis anônimos

Desde o início da pandemia, Daniel Manrique começou a usar sua arte para valorizar a coragem de seus vizinhos. “Comecei a desenhar essas pessoas do bairro que lutavam contra a pandemia, limpavam as ruas, desinfetavam uma quadra de esporte, colocando em risco a própria vida pois o vírus estava muito presente”, relata. Mas quando esses heróis anônimos começaram a morrer, ele resolveu pintá-los nos muros do bairro. A iniciativa foi vivida ao mesmo tempo como catarse pessoal, para não esquecer, mas também para compensar a tristeza das famílias que não puderam enterrar seus mortos como manda a tradição no Peru.

Olinda Pineda aplaude: “Houve muita dor e tristeza aqui. Muita gente morreu por falta de atenção das autoridades de saúde. Somente na minha rua, tivemos até seis mortos que não tiveram direito a velório. É por isso que aplaudo a iniciativa do jovem Daniel. Os dois primeiros retratos que ele realizou eram de pessoas muito apreciadas, amadas aqui”, garante.

Até agora, além de Eustacia, o artista pintou o rosto de Lutz Sherlock, um jovem de 20 anos que morreu de um câncer no estômago por falta de tratamento e vaga nos hospitais devido à pandemia. “Por enquanto, só tive a autorização de duas famílias, com quem conversei pessoalmente, para pintar o retrato de seus entes queridos em um muro”, confidenciou o grafiteiro. “É difícil convencê-los. Nem todo mundo morreu de Covid, mas muitos por falta de assistência nos hospitais, e os familiares têm medo de ser estigmatizados, de perder o emprego; medo que as pessoas pensem que eles também foram contaminados”, detalha.

Uma longa tradição de luta popular

No entanto, as família começam a compreender a intenção de Daniel Manrique e da mulher dele, Carla Magan, que também é artista plástica de rua. Novos murais de vítimas serão realizados em breve no bairro. O próximo mural será o de “Dom Jimenez, um líder popular do bairro muito respeitado, apesar de seu temperamento forte”, explica Carla Magan. Dom Jimenez era enfermeiro e morreu, vítima do coronavírus. “Apesar de sua idade avançada, ele não hesitou em se expor para cuidar e ajudar seus vizinhos”, ressalta a artista.

Em Leticia, que tem uma longa tradição de luta popular, Daniel Manrique e Carla Magan desejam lembrar que atrás dos números, do balanço de vítimas, havia pessoas, sonhos e lutas. “Existe uma tendência a nos insensibilizar, para que o ser humano se acostume a ver a morte como um número. Eles querem que nos acostumemos à perda sem dar um sentido às pessoas que partem. Como se fossemos apenas um número em uma estatística de saldo de vítimas”, denuncia

Pelo menos na comunidade de Leticia, onde os murais das vítimas continuarão a sorrir ainda durante muito tempo aos pedestres, essa desumanização não corre o risco de acontecer.

(Texto publicado originalmente em francês)

 

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