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Bolívia/Crise

"Apoio do Brasil é muito valioso para estabilização da Bolívia", diz chanceler boliviana

A ministra boliviana das Relações Exteriores, Karen Longaric, aponta o Brasil como exemplo na ajuda na transição em seu país, ao mesmo tempo que se revela decepcionada com o Peru e surpreendida com o Chile, duas nações de quem esperava um reconhecimento. As maiores críticas, no entanto, são para o próximo governo da Argentina e, sobretudo, o atual do México, a quem acusa de promoverem a desestabilização da Bolívia com graves consequências para a região.

A ministra boliviana das Relações Exteriores, Karen Longaric, recebeu a reportagem da RFI.
A ministra boliviana das Relações Exteriores, Karen Longaric, recebeu a reportagem da RFI. RFI/Márcio Resende
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Correspondente da RFI na América Latina, de La Paz

Adiplomata de carreira e professora de Direito Internacional levanta a hipótese de Evo Morales ter forjado o cenário de um suposto golpe de Estado, contanto com a proteção do governo mexicano e com um acerto ou mesmo uma indução para que o comandante das Forças Armadas, Williams Kaliman, "sugerisse" a renúncia do ex-presidente no passado 10 de novembro.

A ministra boliviana recebeu a RFI no ministério em frente à Praça Murillo, ao redor da qual também ficam a Assembleia Legislativa e o Palácio Quemado, sede do Governo boliviano. Ao redor da praça, diversas barricadas da polícia protegem as autoridades da tensão social que ainda paira sobre o país.

RFI - O Brasil foi o primeiro país da região em reconhecer o governo de Jeanine Áñez. Por que esse reconhecimento é importante para a Bolívia?

Karen Longaric - O apoio do Brasil é muito valioso para a estabilização do país. É importante porque o Brasil, historicamente, foi sempre importante nas relações internacionais da Bolívia. Há quem julgue que o Brasil, para a Bolívia, é o Estado mais importante nas suas relações políticas, econômicas, comerciais e, obviamente, pela influência que o Brasil tem na região.

De que maneira o Brasil e a região poderiam ajudar, concretamente, nesta transição?

O que a Bolívia deseja neste momento é que os países da região compreendam a situação pela qual estamos atravessando. A necessidade que trouxe consigo um governo de transição orientado a convocar eleições gerais e transparentes tem de ser compreendida pelos países da região. E isso tem de ser interpretado corretamente. Não se trata de um golpe de Estado. Trata-se de uma transição constitucionalmente respaldada. Lamentamos, na Bolívia, que o discurso que o Sr. Evo Morales tem tido, com a intenção de voltar ao país e tomar posse novamente, em virtude de umas eleições absolutamente fraudulentas, seja uma possibilidade que os países que ainda não nos reconheceram estariam considerando. Se Evo Morales voltar, poderia instaurar uma ditadura que duraria vinte ou trinta anos. Não é possível que os países historicamente amigos da Bolívia, sob a consideração de que este seja um golpe de Estado, estejam abrindo o caminho a Evo Morales para se reposicionar no governo com a perspectiva de que, desta vez, instaure-se uma ditadura apoiada por grupos irregulares, pelo terrorismo, pelo tráfico de drogas que, de qualquer forma, vai influir negativamente na região.

Neste momento, Evo Morales está fora do país, dizendo que esta é uma ditadura. Os militantes dele aqui também repetem que o atual governo é uma ditadura. A senhora está dizendo que, justamente com esse discurso, se ele voltar, então poderia realmente instaurar uma ditadura?

Sim. Este é um governo democrático. A Constituição estabelece uma sucessão de governo que pode acontecer em virtude das ausências do presidente, do vice-presidente, do presidente do Senado e assim sucessivamente. Foi uma sucessão absolutamente legal. E a presidente do Senado tomou posse como presidente da República. Não é uma ditadura e isso está claramente entendido. Porém, o discurso de Evo Morales é para injuriar este governo, dizendo que é um golpe de Estado. Ele não pode dizer que esta seja uma ditadura nem que houve um golpe de Estado. Mas, com esse discurso, ele persuadiu muitos países a não reconhecerem este governo. Mas o que pretende Evo Morales? Voltar a governar a Bolívia, baseado no resultado de umas eleições fraudulentas?

Ele poderia ser candidato se voltasse?

Não. Ele não pode ser candidato. Mas ele, na verdade, não quer vir para disputar um processo eleitoral. Ele quer vir a retomar o governo baseado em uma suposta vitória nas eleições. Ele rejeita o relatório da OEA (Organização dos Estados Americanos). Ele diz que a OEA não fiscalizou corretamente o processo eleitoral e que quem ganhou as eleições foi ele e que ele tem direito a voltar à Bolívia para iniciar o meu quarto período.

Nesse sentido, qual é a sua consideração sobre governos da região que apoiam Evo Morales, como México e Argentina? Refiro-me à Argentina de Alberto Fernández, quem já tinha reconhecido a vitória de Evo Morales.

Aqui está claramente desenhado um plano geopolítico desses governos populistas, que se auto definiram como socialistas do século XXI, ao qual (o presidente mexicano Andrés Manuel) López Obrador parece ter-se somado como um operador importante da política de Evo Morales. Uma política de desestabilização da Bolívia. De fato, na Argentina, o (presidente Mauricio) Macri já não manda. Quem está tomando as decisões maiores nesse país é (o eleito Alberto) Fernández. Ele está antecipando as decisões do seu período governamental.

A senhora se queixou com o México sobre essa questão de violar regras do asilo político. Porém, todos os dias Evo Morales fala como se estivesse aqui. Qual foi a resposta do México?

Fiz uma representação perante a embaixadora do México. Eu argumentei que houve uma mudança na política do México. Manifestei a nossa preocupação com o fato de o México estar violando as normas do direito de asilo, permitindo ao Sr. Evo Morales não só se pronunciar sobre a política interna boliviana, mas também desestabilizar o momento político na Bolívia e ameaçar retornar e mobilizar a sua gente, desafiando a legalidade na Bolívia. Então, eu disse à embaixadora que lamentávamos que isso estivesse acontecendo. Eles responderam que a Constituição mexicana não lhes impõe limites à liberdade de expressão dos asilados. Porém, não há nenhuma norma na Constituição mexicana que permita interpretar essa liberdade e a possibilidade de violar uma norma internacional. As normas do direito ao asilo são iguais no mundo todo. É um princípio do direito de asilo que o asilado esteja limitado em emitir expressões de caráter político que desestabilizem ou que ponham em risco as relações entre os países.

Então, o México não só estaria protegendo Evo Morales, mas também sendo conivente com uma desestabilização da Bolívia?

É muito difícil, para mim, como chanceler da República, afirmar isso. Mas estamos muito preocupados porque as manifestações diárias do ex-presidente, em tom cada dia mais elevado, parecem indicar que ele está protegido e imune a tudo. Por outro lado, o México, que sempre teve uma linha em matéria de relações internacionais, sustentada na doutrina Estrada*, respeitosa da não-ingerência nos assuntos internos de outros Estados, hoje está violando essa doutrina. É a ponta-de-lança da sua política exterior. Parece que o interesse em proteger Evo Morales é muito maior do que a legalidade das instituições mexicanas que sustentam a sua política exterior.

Acham que a experiência da Bolívia pode inspirar a Venezuela a também fazer a sua mudança política?

Eu acho que isso é muito mais grave. Não se trata apenas da Venezuela. A atitude que o México está demonstrando e que o próximo governo da Argentina está mostrando acredito que, infelizmente, está orientada a promover uma mudança de graves consequências para a estabilidade da região.

Qual é o principal desafio da Bolívia neste momento?

Pacificar o país e adiantar as eleições no mais curto prazo de tempo possível. Eleições transparentes, com cooperação internacional. E poder entregar ao povo boliviano um governo eleito sob regras de transparência e que possa, pouco a pouco, recuperar a institucionalidade do país.

E qual é o risco?

O risco é muito grande e provém de vários flancos. Por um lado, a comunidade internacional nos está dando as costas. Países que deveriam, neste momento, apoiar-nos incondicionalmente, ou países da região que não nos reconheceram. Se a Bolívia não conseguir concretizar o propósito de convocar eleições, acompanhada dos organismos internacionais, e Evo Morales conseguir desestabilizar isto, o perigo é para todos na região.

A quais países da região se refere?

Brasil, Equador e Colômbia reconheceram. Estamos esperando que o Peru se manifeste. É importante para nós, pois sempre tivemos excelentes relações com o Peru. Não sabemos o que aconteceu com o Chile. Francamente, surpreende que o Chile** tome uma posição dessa natureza quando, talvez, fosse o país mais afetado caso na Bolívia imperasse uma ditadura de alcances inimagináveis.

Por que não foi golpe?

Não foi golpe por uma simples razão: a partir da fraude eleitoral escandalosa, a sociedade civil, a população civil saiu espontaneamente às ruas, sem a liderança de ninguém. Saiu espontaneamente a protestar, a reivindicar o seu voto, com a convicção de rejeitar a fraude eleitoral. Essa pressão veio acompanhada da auditoria da OEA. Evo Morales, quando soube o resultado da auditoria, não a comunicou ao povo boliviano e apresentou a sua renúncia. Ele sabia que essas evidências já não podiam sustentá-lo nem mais um minuto no governo.

O que divide a comunidade internacional é a "sugestão" do comandante das Forças Armadas, Williams Kaliman, para que ele renunciasse. Os países que estão em dúvida observam essa sugestão. Isso causou ruído porque recordou o passado, nos anos 70 e 80, quando generais das Forças Armadas interrompiam processos. A senhora sente isso?

Não há ponto de comparação. Essa é uma leitura forçada, definitivamente.

Mas a senhora não sente isso por parte de alguns países e líderes políticos?

Sim, efetivamente. Prendem-se a isso e, deliberadamente, ignoram outras evidências.

E por que essa sugestão não teve influência, mas sim todo o processo anterior que a senhora descreve?

Porque as próprias Forças Armadas sabiam que a pressão do povo seria impossível de parar, impossível de ser detida. Para além disso, havia o resultado da auditoria da OEA que acabava de sair e que evidenciava a fraude monumental. As Forças Armadas lhe sugerem que ele renuncie. Na verdade, é uma sugestão muito especial, mas é uma sugestão. Um golpe de Estado é uma imposição, é pressão, é coação. Esses são os mecanismos de um golpe de Estado. De nenhuma maneira, isso pode ter uma leitura de golpe de Estado. É por isso que estranho que certos países, com maior interesse em preservar a estabilidade e a paz da região, estão dando-nos as costas ou estão adotando uma posição tímida.

Evo Morales terminaria o seu mandato em 21 de janeiro. Existe golpe de Estado quando faltavam dois meses para o final de um governo?

De nenhuma maneira. É uma leitura muito forçada e ofensiva à decisão do povo boliviano, aos direitos do povo boliviano. A comunidade internacional, com esta atitude, está ofendendo os direitos do povo boliviano. O povo saiu a marchar, pacificamente, pedindo que respeitassem o voto.

Evo Morales renunciou e foi seguido de toda a linha sucessória. Se não tivessem renunciado, o Movimento Ao Socialismo (MAS), partido de Morales, estaria agora conduzindo. Seria, de alguma forma o próprio Morales, a conduzir este processo...

Claro. A senhora Adriana Salvatierra (presidente do Senado, aliada de Morales) poderia estar conduzindo este processo. Talvez fosse necessário fazer uma análise muito mais profunda sobre quais foram os atores e sobre qual foi a intenção com as renúncias de Morales, do vice-presidente e de Adriana Salvatierra. Também é preciso analisar a persuasão do Comandante das Forças Armadas, se foi espontânea ou se foi planejada. Não sabemos.

Pode ter sido um acerto entre eles?

Exatamente. A comunidade internacional tem de ter a capacidade de fazer uma leitura correta.

O que a senhora suspeita é que um acerto entre eles permitiria que Evo Morales, sabendo que seria derrotado numa eleição, pudesse sair com a bandeira de um golpe de Estado. É essa a interpretação?

Sim, efetivamente. O Sr. Evo Morales, indubitavelmente, estava muito bem assessorado. Possivelmente tenha planejado todo este cenário, inclusive o do México, para que esteja acontecendo esta situação tão penosa para a Bolívia.

E como se sai dessa situação penosa?

O objetivo é que, com um clima político adequado e com a pacificação imediata do país, possamos convocar eleições nacionais, evitando essa fase inútil das primárias, e ir diretamente às eleições gerais. Este governo de transição não quer estender o seu mandato.

O país é uma batata quente se não se conseguir pacificar. As consequências podem ser de alcances inimagináveis.

 

* A doutrina de Genaro Estrada diz que o importante para se reconhecer um governo é saber se esse governo é efetivo e se controla o Estado sem questionar a forma como se chegou ao poder. Caso contrário, é uma indevida ingerência nos negócios de um Estado estrangeiro.

**O reconhecimento do Chile era por oposição a Evo Morales, quem, durante os seus quase 14 anos de governo, colocou o vizinho como o grande inimigo, levando até uma demanda ao Tribunal Internacional de Haya por uma saída soberana ao oceano depois que o Chile ficou com uma parte do território boliviano, perdido na Guerra do Pacífico (1979-1884).

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