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Radar econômico

O dinheiro vivo não vai acabar tão cedo, como se previa

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Nos últimos anos, governos, o sistema bancário e financeiro e empresas de tecnologia martelam que o uso do dinheiro em espécie está com os dias contados. Porém, na prática, cédulas e moedas mantêm seus espaços privilegiados no comércio. Para estudiosos do assunto, a transição para uma economia 100% digital se choca a uma barreira difícil de ultrapassar: a confiança.

Pagamento cartão de crédito
Pagamento cartão de crédito Ahmad Ardity de Pixabay
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O setor de segurança na internet é promissor, mas os diversos escândalos que revelaram o uso nada escrupuloso dos dados dos usuários por empresas e Estados deixam os consumidores refratários à ideia de só comprar por cartão bancário ou com o próprio telefone. A pesquisadora Jeanne Lazarus, especialista em sociologia do dinheiro da Sciences Po, de Paris, nota que a desmaterialização dos pagamentos faz parte da história do dinheiro.  

“A desmaterialização é constante. O cheque já foi uma forma, muitos anos atrás, e agora o próximo passo é digital, mas isso não é algo revolucionário sobre a moeda: ela, por definição é abstrata”, relembra.

Combate a fraudes e evasão fiscal

Governos e instituições pregam que o rastro deixado pelas transações financeiras eletrônicas tornaram o sistema mais seguro, ao limitar o dinheiro sujo em circulação. Também são eficientes para combater a evasão fiscal.

Neste ano, o Banco Central Europeu (BCE) deixou de emitir notas de € 500, para desestimular os pagamentos de montantes elevados em dinheiro vivo.

rastro deixado pelas as transações financeiras eletrônicas tornaram o sistema mais seguro, ao limitar o dinheiro sujo em circulação.
rastro deixado pelas as transações financeiras eletrônicas tornaram o sistema mais seguro, ao limitar o dinheiro sujo em circulação. rupixen.com de Pixabay

Os avanços rumo a um mundo sem dinheiro em espécie são incontestáveis: os cartões são aceitos para quantias cada vez menores, plataformas de pagamento como Paypal se popularizaram e as criptomoedas viraram moda. Ainda assim, o uso do dinheiro à antiga aumentou no mundo, apesar das projeções de que ele poderia acabar já em 2020, nos países desenvolvidos.

Na França, os pagamentos em espécie no comércio estão em queda, mas permanecem majoritários em relação aos meios eletrônicos. Quem atesta é Marc Schwartz, diretor-presidente da Casa da Moeda de Paris.

“Quando olhamos os dados sobre a circulação de dinheiro vivo, a conclusão é muito simples: nunca houve tanto dinheiro em espécie em circulação na Europa e no mundo. Na zona do euro, a circulação de cédulas e moedas de euros aumentou quase 60% de 2006 a 2016”, afirma Schwartz, em entrevista à emissora France Culture. “Essa tendência se repete em nível mundial: um estudo do Banco das Regulamentações Nacionais, o Banco Central dos Bancos centrais, mostra que, em 42 países analisados, 40 tiveram aumento de circulação de espécies. As únicas exceções são a Suécia e a Noruega.”

Desconfiança em criptomoedas – mas também em Estados

Schwartz aponta que, diante da ameaça de crises financeiras, o dinheiro em moedas fortes como o dólar ou o euro se tornou uma garantia de valor – muita gente não abre mão de manter uma boa quantia guardada em casa ou num cofre de banco, apesar da abundância de opções digitais.

A relutância é ainda maior para o uso de moedas virtuais, sujeitas a especulações e sensíveis a crises monetárias. Jeanne Lazarus avalia que o passo rumo à adoção de criptomoedas como Bitcoin ou a Libra, um projeto anunciado pelo Facebook, só é dado quando três graus de confiança são atingidos.

“Primeiro, uma confiança pragmática, ou seja, que esse dinheiro será aceito em vários lugares e não será muito limitado. A segunda confiança é ter certeza de que essa moeda é sólida e não vai se desvalorizar à primeira turbulência financeira nem está muito exposta a especulações. Por fim, há a confiança ética: que valores ela carrega, a qual comunidade o utilizador visa se integrar ao adotá-la”, sublinha a pesquisadora francesa. “As moedas, historicamente, são ligadas a espaços geograficamente localizados, a Estados-nações ou projetos comuns, como o euro. Elas se referem a um poder político específico e a um grupo social específico.”

A pesquisadora Jeanne Lazarus, da Sciences Po, é especialista em sociologia do dinheiro.
A pesquisadora Jeanne Lazarus, da Sciences Po, é especialista em sociologia do dinheiro. Captura de vídeo

É por isso que, na opinião da socióloga, ainda está distante o dia em que as pessoas dispensarão o papel do Estado na emissão de moedas e na fiscalização das transações bancárias. Mas ela ressalta que a participação estatal também pode ter um lado perverso ao migrar para a economia 100% digital. Na China, os pagamentos por telefone são muito mais populares do que os com cartão bancário – porém, num país autoritário, essa aparente modernidade esconde violações das liberdades individuais.

“Na China, há duas operadoras para fazer pagamentos por telefone e ambas centralizam não só as informações sobre pagamentos, como todos os dados transmitidos pelos telefones, como as mensagens que enviamos, onde fomos, onde e o que compramos, mas também se tivemos algum problema com a polícia ou tomamos uma multa por excesso de velocidade”, afirma Lazarus. “O poder central chinês utiliza todos esses dados para o sistema de classificação social dos cidadãos, que determina a sua ‘qualidade de cidadania’.”

A classificação obtida influencia no preço do crédito, de serviços e até na obtenção de um emprego pelos chineses – indicando que uma simples compra no supermercado pode levar a consequências imprevisíveis na vida dos consumidores.

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