Acessar o conteúdo principal
Um pulo em Paris

Radicalização de protestos, a nova estratégia da juventude francesa contra a reforma da Previdência

Publicado em:

Desde que o governo francês resolveu impor a reforma da Previdência por decreto, na última semana, uma nova forma de contestação surgiu. Os jovens, que até então eram minoria nas manifestações, aderiram ao movimento, mas com uma nova estratégia: a radicalização dos atos.

Manifestante atira bomba de gás lacrimogênio contra a polícia durante protesto contra a reforma da Previdência em Paris, em 23 de março de 2023.
Manifestante atira bomba de gás lacrimogênio contra a polícia durante protesto contra a reforma da Previdência em Paris, em 23 de março de 2023. AP - Aurelien Morissard
Publicidade

Daniella Franco, da RFI

O anúncio da primeira-ministra francesa, Elisabeth Borne, na última quinta-feira (16), do recurso ao controverso artigo 49.3 para aprovação da reforma da Previdência sem o voto dos parlamentares detonou uma forte revolta dos jovens do país. Na mesma noite, dezenas de pessoas se reuniram de forma espontânea na região da praça da Concórdia, perto da Assembleiade deputados, e enfrentaram um imenso dispositivo policial mobilizado pelo governo.

A estratégia de dispersão dos manifestantes, através das repressivas brigadas motorizadas, foi um tiro no pé das forças de segurança. Ao invés de retornarem para suas casas, os jovens se espalharam pelas ruas da capital, protagonizando cenas de vandalismo e mais confrontos com as forças de segurança. O movimento se disseminou a várias outras cidades francesas, como Bordeaux, Nantes e Rennes.

De forma não intencional, surgiu uma nova estratégia de protestos, classificados de “selvagens” pelas autoridades, que vêm se repetindo há uma semana. Por meio das redes sociais e aplicativos de mensagens instantâneas, militantes determinam um ponto de encontro diferente todas as noites para não serem facilmente identificados pela polícia.

Pelas ruas, vestidos de preto, eles caminham pelo meio das ruas cantando músicas contra as forças de ordem. O acrônimo “Acab”, do inglês “All Cops Are Bastards(todos os policiais são desgraçados) é frequentemente entoado. Ao perceberem que são observados ou filmados por cidadãos nas janelas, eles respondem: “não fiquem nos olhando, venham nos ajudar”.

Alguns deles montam barricadas, outros derrubam e queimam lixeiras. Quando as brigadas policiais se aproximam, os jovens se dividem em pequenos grupos, se infiltram por ruas menores, e voltam a se reunir no próximo ponto de encontro indicado para dar sequência aos atos que podem entrar madrugada adentro.

Apelidado pela imprensa francesa como “o jogo de gato e rato”, não há uma liderança específica nesse novo formato de protesto. Boa parte dos participantes é universitária, com tendência política anarquista ou de extrema esquerda, na faixa dos 20 anos.

 

Manifestantes correm da polícia durante protesto contra a reforma da Previdência em Paris na quinta-feira, 23 de março de 2023.
Manifestantes correm da polícia durante protesto contra a reforma da Previdência em Paris na quinta-feira, 23 de março de 2023. AP - Christophe Ena

 

Exasperação diante da imposição da reforma

Para o sociólogo francês Sébastian Roché, especialista em questões policiais e de segurança na França, o recurso ao controverso artigo 49.3 da Constituição do país para aprovar a reforma da Previdência foi o detonador do fenômeno. “Quando o presidente francês decidiu que os deputados não votariam o projeto de lei, o processo democrático foi interrompido, o que provocou o estopim da mobilização”, aponta.

Em seguida, a rejeição de duas moções de censura contra o governo pela Assembleia de deputados, na terça-feira (21), também resultou em uma longa noite de manifestações “selvagens”. Para acirrar ainda mais os ânimos, em uma entrevista concedida pelo presidente francês na quarta-feira (22) a dois canais de TV, a previsão de que a reforma entre em vigor até o final do ano, foi anunciada. O tom arrogante e a inflexibilidade expressada por Macron também resultaram em uma mobilização recorde nos protestos convocados pelas centrais sindicais nesta quinta-feira (23).

No entanto, apesar de a indignação ser coletiva, segundo Roché, o novo formato de protesto criou uma forma de contestação paralela ao movimento institucionalizado nas ruas. A nova estratégia é desafiadora às autoridades, que dão mostras de não saber como reagir. Com atos inegavelmente politizados e abertamente radicais, os jovens vêm obtendo como resposta uma crescente repressão policial - uma escolha “muito agressiva” por parte do governo, avalia Roché.

A manutenção da ordem é o setor policial mais militarizado e mais estruturado na França. A secretaria de Segurança Pública escolheu a estratégia de dispersão desses protestos através das brigadas motorizadas, que são as mais violentas da França, além das detenções. Mas, na França, embora não tenhamos o direito de organizar atos não autorizados, temos o direito de participar deles”, pondera.

Desde o início dos atos “selvagens”, há uma semana, cerca de mil pessoas foram presas. Denunciadas por ONGs como arbitrárias, as violências policiais e detenções atingem também jornalistas que cobrem as manifestações, militantes pacíficos e cidadãos não implicados nos atos, como pedestres que estavam na rua no momento dos confrontos.

O uso indiscriminado da força é uma característica das forças de segurança nacional. Qualquer um pode ser alvo de violência policial, seja uma pessoa tomando café na calçada de um bar ou alguém saindo de uma loja, alunos saindo de uma escola, todos podem ser levados para o camburão”, diz.

Preocupação com as violências

Nesta sexta-feira (24), novas convocações para os atos “selvagens” circulavam nas redes sociais. Ao mesmo tempo, o Ministério do Interior começa a dar mostras de um cansaço por parte das brigadas que enfrentam um ódio cada vez maior dos militantes. Na quinta-feira, um policial desmaiou ao ser atingido por uma pedra na cabeça durante o confronto com manifestantes. No total, 441 membros das forças de segurança foram feridos no período de uma semana.

Membros do governo começam a se manifestar sobre a situação. “É preciso que todo mundo peça calma”, disse a presidente da Assembleia de deputados, Yaël Braun-Pivet. O ex-primeiro-ministro socialista Bernard Cazeneuve divulgou um comunicado fazendo um apelo pela “desescalada das violências” e sugerindo uma pausa na reforma. O mesmo tom é empregado por Laurent Berger, secretário-geral da central sindical Confederação Francesa Democrática do Trabalho, que pede o congelamento do projeto durante seis meses para que “as coisas se acalmem”.

Já a comissária dos Direitos Humanos do Conselho da Europa, Dunja Mijatovic, se disse preocupada com “o uso excessivo da força” contra os manifestantes na França, pedindo para o país respeitar o direito de protestar. “Cabe às autoridades permitir o exercício das liberdades, protegendo os manifestantes pacíficos e jornalistas que cobrem esses atos das violências policiais”, indicou.

Macron ainda não comentou os apelos, mas afirmou nesta sexta-feira que está disposto a dialogar com os líderes sindicais para conversar sobre questões relacionadas ao trabalho, mas sem tocar na questão da reforma da Previdência. “Indiquei nossa disponibilidade para avançar sobre assuntos como desgaste profissional, fim de carreira, reorientaçõoes, evolução de carreiras, condições de trabalho, remunerações em alguns setores”, disse.

No entanto, o presidente expressou novamente sua obstinação em modificar o sistema de aposentadorias. “A reforma da Previdência está sendo analisada pelo Conselho Constitucional e é evidente que esperaremos sua decisão”, reiterou.

Essa, que é a mais alta jurisdição administrativa da França, estuda atualmente a constitucionalidade do contestado texto. Deputados da coalizão de esquerda Nupes na Assembleia e do partido de extrema direita Reunião Nacional, bem como senadores de esquerda, também registraram recursos junto ao Conselho Constitucional contra a reforma. A decisão é esperada para até 21 de abril.

NewsletterReceba a newsletter diária RFI: noticiários, reportagens, entrevistas, análises, perfis, emissões, programas.

Acompanhe todas as notícias internacionais baixando o aplicativo da RFI

Veja outros episódios
Página não encontrada

O conteúdo ao qual você tenta acessar não existe ou não está mais disponível.