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“Paletó e eu: memórias de meu pai indígena”, de Aparecida Vilaça, é lançado na França com elogios

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O livro “Paletó e eu: memórias do meu pai indígena”, da antropóloga brasileira Aparecida Vilaça, lançado no Brasil em 2018, acaba de ser traduzido e publicado na França pela editora Marchialy. A tradução de “Paletó et moi” é de Diniz Galhos.

Aparecida Vilaça e seu pai indígena Paletó.
Aparecida Vilaça e seu pai indígena Paletó. © Carlos Fausto
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A publicação de “Paletó e eu” já recebeu boas críticas e elogios na França. O jornal Le Monde escreve que o texto “vibrante e pessoal de Aparecida Vilaça nos questiona sobre as mil e uma maneiras de sermos verdadeiramente humanos”. O célebre antropólogo francês Philippe Descola fala em relato monumental e comovente sobre uma pessoa rara, uma civilização em parte extinta, e a dimensão afetiva, com frequência ignorada, da profissão de antropólogo”.

“Paletó e eu” não é nada acadêmico. O livro é um relato quase íntimo, sobre o luto e sobre a relação pessoal de Aparecida Vilaça com Paletó, seu pai wari, o povo indígena do sudoeste amazônico que a antropóloga do Museu Nacional da UFRJ estuda desde 1986.

O livro mostra a evolução de Paletó, mas também dos waris. O indígena, que morreu em 2017 aos 85 anos, viveu todas as etapas do contato com os brancos, inclusive os massacres dos anos 1940-50. Ao relembrar essa história e a relação privilegiada que tinha com Paletó, seu principal interlocutor entre os wari, Aparecida Vilaça também conta a sua própria formação como antropóloga.

"Paletó et moi", da antróloga brasileira Aparecida Vilaça, acaba de ser publicado na França pela editora Marchialy.
"Paletó et moi", da antróloga brasileira Aparecida Vilaça, acaba de ser publicado na França pela editora Marchialy. © di

 

No Brasil, “Paletó e eu”, vencedor do prêmio Casa de las Américas em 2020, teve uma boa acolhida de público e Aparecida Vilaça espera que a tradução francesa tenha o mesmo sucesso.

 

“O interesse hoje pelas questões da Amazônia, as questões indígenas, é global, principalmente nesse momento de caos climático. (...) Esse livro pode ser uma introdução para pessoas leigas, no sentido de não antropólogos ou não acadêmicos, porque é uma linguagem muito acessível para questões amazônicas”, acredita Aparecida Vilaça.

A antropóloga brasileira virá à França para falar de sua obra no dia 11 de outubro. O encontro com os leitores acontece na Villa Gillet, em Lyon.

Leia a entrevista completa ou clique na foto principal para ouvir a entrevista de Aparecida Vilaça

RFI:  Aqui na França, “Paletó e eu” já teve boas críticas e bons elogios. Você espera o mesmo sucesso que o livro teve no Brasil?

Aparecida Vilaça: Espero sim porque, não importa o local onde se esteja, é um livro muito pessoal, no sentido de um relato, de uma vida, de um homem indígena do seu nascimento, a partir da memória dele, até o momento da sua morte. Então, eu acho que é um livro universal em termos de sentimentos humanos, de percurso. O interesse é hoje global pelas questões da Amazônia, pelas questões indígenas, que estão muito prementes, principalmente nesse momento que a gente está vivendo de caos climático. Os olhos do mundo estão voltados para a Amazônia. Eu acho que esse livro pode ser uma introdução para pessoa leigas, no sentido de não antropólogos ou não acadêmicos, porque é uma linguagem muito acessível para questões amazônicas. 

Não é o seu primeiro livro. Você tem vários livros acadêmicos, inclusive vários deles sobre os waris, mas é o seu primeiro livro, vamos dizer assim, mais pessoal. Esse estilo foi uma escolha ou ele se impôs a você a partir da notícia da morte do Paletó?

As duas coisas. Ele se impôs e foi uma escolha. Eu já estou há muito tempo no movimento de mudar um pouco a minha linguagem. Diante das questões que estão se passando aqui na Amazônia, tão perto de mim, não só no sentido geográfico, mas no sentido de interesse intelectual e emocional, eu entendo cada vez mais arrumar um modo, uma linguagem, de transmitir todo esse conhecimento que eu tenho, de quase 40 anos de pesquisa de campo na Amazônia, para um outro público que não seja mais restrito, acadêmico. Então, isso também era uma questão para mim já há muitos anos. Com o evento da morte desse homem, que me adotou como filha, com quem eu convivi por mais de 30 anos, que conheceu meus filhos, que veio ao Rio, que conheceu minha família, que morreu quando eu estava longe, no Rio de Janeiro, eu fiquei muito tomada emocionalmente, principalmente pela impossibilidade de estar lá. Foi uma morte súbita, eu não tive tempo de chegar a Rondônia, onde ele vivia. Eu resolvi escrever como uma forma de lidar com o meu luto. Então, o estilo pessoal também se impôs, porque é a única forma de fazer um relato desse. O livro acaba sendo uma dupla biografia dele e minha me formando como antropóloga. Então é um é um livro que eu acho que também serve para os antropólogos em formação.

Você fala da evolução do Paletó, mas também da sua evolução?

Sim. Eu cheguei lá (em Rondônia) uma menina com 20 e tantos anos. É toda a minha descoberta de um outro universo, toda uma descoberta de um outro modo de relação. E o Paletó foi essencial, como meu anfitrião, meu orientador nessa minha nova viagem, que me acolheu e que me ensinou coisas, com quem eu aprendi a mitologia. (...) Ele era considerado um grande sábio local e eu tive a sorte desse homem se aproximar de mim, talvez pela grande curiosidade que ele sempre teve em outros mundos, em outras pessoas. Ele se aproxima de mim e me e me oferece todo um conhecimento, toda uma forma de pensar que foi um encontro de sorte. Foi, eu acho, um dos grandes encontros da minha vida.

Apesar dessa relação de proximidade, ao saber da morte dele, aconteceu uma coisa que você temia, você não conseguiu entoar os cantos fúnebres dos waris?

Os waris são um povo que vive no Brasil, mas quase na fronteira com a Bolívia, no estado de Rondônia. Eu não tinha tempo de me deslocar. Eles têm um canto ritual, que é um canto fúnebre, em que você fala da vida do morto, o que ele já fez por você, como era a relação, tudo em forma cantada. Eu sabia disso, que era a coisa certa a fazer, mas eu me vi segurando aquele celular, com minha irmã (wari) chorando na outra ponta, eu não conseguia. Eu chorava, chorava, mas eu não conseguia cantar e isso me deixou muito triste. Mas foi também uma forma de conhecer como as formas de expressão de lutos podem ser culturalmente muito diferentes e que, às vezes, a gente não consegue, num momento de extrema emoção, franquear essas barreiras nessas diferenças.

O relato é muito comovente, mas ele também tem passagens muito divertidas, como você diz que o Paletó era. Uma dessas passagens é a reprodução, no seu apartamento no Rio de Janeiro, do rito funerário wari com a prática de canibalismo. Os waris ainda praticam o canibalismo ritual?

Não. Existiam duas formas de canibalismo, de antropofagia. Eles comiam os mortos. Era uma forma, digamos, de funeral, de dar fim a um corpo. Eles entendiam que o morto enterrado continuava a sentir e sua alma não poderia ir para o mundo dos mortos que fica debaixo dos rios. Comer, era uma forma de dar fim ao corpo, de uma forma totalmente ritualizada. E tinha também comer os inimigos, que era uma outra forma de canibalismo, totalmente diferente da prática do ritual. Mas eu estava muito interessada no ritual funerário endocanibal, que se come dentro do próprio grupo, e várias vezes o paletó, que conhecia bem, tentou me ensinar usando um boneco. Ele me fez fazer como se eu fosse uma das pessoas enlutadas, e nós filmamos. Eu fiz essa prática de encenação com ele várias vezes para eu aprender os detalhes. Paletó sempre muito bem humorado, porque fazer essas encenações não tem nada de sagrado. Ele sabia que era uma brincadeira, uma reprodução, e eu também. Como você disse, o Paletó era uma pessoa muito engraçada, porque ele era muito inteligente. Toda hora fazia observações muito agudas sobre as coisas, sobre as pessoas. Quando ele vem no Rio de Janeiro, ele veio três vezes me visitar, ele perguntava coisas. Então, acabou que um livro começando por um luto muito profundo, virou um livro engraçado porque o livro retrata o Paletó. É um livro que o leitor acaba rindo porque era isso que era o Paletó. Foi inevitável. O livro acabou sendo esse misto de tristeza grande e muita alegria.

Você conta toda a evolução é do povo Wari, desde os primeiros contatos com o homem branco, uma evolução que é retratada pela história do Paletó que viveu. todas essas etapas, a aculturação, a evangelização dos waris. A morte do Paletó foi o fim de uma relação privilegiada e, também, o fim de um mundo?

Foi o fim de uma relação específica entre duas pessoas. A gente tinha uma relação muito forte, de muita cumplicidade. A gente ria muito junto. Foi o fim dessa relação específica, mas eu continuo, eu tenho ainda meus parentes lá, quer dizer, os filhos do Paletó são os meus irmãos. Eu tenho os irmãos dele que são meus pais, como se chama lá. Eu tenho ainda uma relação muito forte com os waris. Meu irmão Abrão, que aparece muito no livro, a gente sempre se fala por telefone porque agora eles têm internet na aldeia, a gente pode se falar por WhatsApp.

Você continua estudando os waris?

Sim, continuo.

Todas as questões que você falou no início dessa entrevista estão, mais do que nunca, presentes na atualidade com toda essa discussão sobre o Marco Temporal. Teve uma vitória no STF que foi revertida no Senado, numa votação relâmpago. Um dos elementos desse projeto aprovado no Senado é muito preocupante e pode ser usado para tirar os povos indígenas de suas terras ancestrais, que a mudança de traços culturais. O que você acha desse elemento?

Eu acho isso criminoso. Essa coisa do Marco Temporal é uma coisa totalmente anticonstitucional. A Constituição é de 1988. Ela fala do direito dos indígenas aos seus territórios tradicionais. Esses territórios, que eles estão ocupando, são comprovadamente tradicionais, quer dizer, de longa ocupação, ancestral. Eles estão nessas terras evidentemente muito antes, ou às vezes depois de 1988. O Marco temporal diz que eles só têm direito às terras se estivessem comprovadamente nelas em 1988. Só que muitos deles tinham sido expulsos dessas terras antes, por grileiros e invasores de todo tipo. Alguns conseguiram depois retomar legalmente as terras. Então, isso é completamente criminoso, é um passo atrás não só no respeito aos direitos indígenas, à diversidade cultural, que é tão importante e tão valorizada mundialmente, como também à questão climática. Se você olhar um mapa da Amazônia e do Brasil central, as únicas áreas verdes de floresta primária preservada são áreas indígenas ou reservas florestais biológicas. As áreas indígenas são aquelas intactas, ou seja, os indígenas têm um conhecimento ancestral para que o uso da natureza, do meio ambiente, seja um uso sustentável, dentro somente das necessidades de alimentação, das necessidades de sobrevivência, sem sobre-exploração. Preservar essas terras indígenas, dar aos indígenas direitos aos seus territórios, não é só um direito legal adquirido, mas é uma coisa importante para todos nós que estamos vivendo agora. Essa crise climática que a gente achou que talvez fosse para uma próxima geração, chegou agora. No Brasil, fez 40°C no inverno, tem temporais no Rio Grande do Sul, os rios da Amazônia estão absolutamente secos, com botos cor-de-rosa morrendo, ou seja, tem uma mudança que já aconteceu. Não há modo de reverter ou de não aprofundar essa crise se essas terras indígenas forem assediadas ou oferecidas para exploradores. Isso vai afetar todos nós, quer dizer, indígenas ou não indígenas, brasileiros ou estrangeiros. Essa questão do Marco Temporal não pode ser pensada como uma luta só dos indígenas ou só dos antropólogos que são ligados aos índios, mas uma luta mundial. Então, isso é criminoso. Essa decisão do Senado pegou todo mundo de surpresa porque nós estávamos muito aliviados com o Supremo, que deu maioria contra o Marco Temporal. Foi uma rasteira e a gente espera que seja revertida essa decisão. É o lógico, não é possível que tenha nesse momento do mundo esse tipo de decisão de passo atrás. 

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