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Linha Direta

Marco Temporal: povos tradicionais comemoram, lembrando dificuldades e desafios

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A tragédia Yanomami evidenciou que a homologação da posse da terra não livra povos tradicionais de graves ameaças. Mas lutar pela sobrevivência sem ter direito à área que historicamente lhes pertenceu seria praticamente um tiro fatal para tantas comunidades. Por isso a histórica decisão do STF, que rechaçou a ideia do marco temporal das demarcações, foi tão comemorada pelos indígenas

Por 9 votos a 2, Supremo invalida tese do marco temporal
Por 9 votos a 2, Supremo invalida tese do marco temporal © Antônio Cruz/Agência Brasil
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Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

Difícil dimensionar a vitória no Supremo Tribunal Federal para povos que já travaram tantas lutas, especialmente após a chegadas dos europeus. Mas a reação dos indígenas que ocupavam a área externa do STF, com danças, choro, abraços e um claro alívio no rosto, mostra que a derrubada da tese ruralista do marco temporal foi sim um nó de angústia desfeito na garganta da sobrevivência dessas comunidades.

“Para a gente, além de ser uma vitória, é uma grande alegria. A gente está celebrando como muita festa, muita dança, muita cantoria. Mas também com aquela mão na consciência de saber que muita gente sofreu, muita gente morreu. Por isso não aceitamos que as pessoas definam uma data para julgar a nossa história. A gente já estava aqui muito antes. Os nossos ancestrais estavam aqui muito antes. As nossas histórias estavam aqui muito antes”, afirmou à RFI Caíque Wapichana, que foi de Roraima a Brasília acompanhar o julgamento.

Por 9 a 2 o Supremo Tribunal Federal afastou o marco temporal, que pretendia limitar as terras indígenas àquelas que estavam ocupadas pelos povos originários no exato dia da promulgação da Constituição de 1988. Pesaram argumentos como a perseguição que sofreram ao longo da história, como na ditadura militar, que tirou muita gente de sua terra, e a característica nômade de várias tribos.

A vitória vem num momento em que boa parte do Congresso se mostra avesso à pauta indígena, em que ministros do STF defenderam no voto a exploração de atividades econômicas nos territórios, mesmo se posicionando contra o marco temporal, e em que a situação dramática de povos que já têm a área reconhecida deixa claro que só homologar não basta.

Sentimentos mistos

Por isso o resultado dessa quinta-feira tem um misto de sentimentos para os indígenas. De esperança de que, apesar das adversidades políticas, há um movimento mais forte em prol dos povos originários, ainda mais num momento de crise climática global, mas também de que não se pode baixar a guarda. O próprio Supremo ainda terá de analisar questões sobre o tema que ficaram em aberto, como a indenização a quem ocupou de boa fé a terra indígena e realizou no local benfeitorias.

“Agora nós vamos continuar lutando para que o governo brasileiro siga a política de demarcação como está previsto no nosso texto constitucional, mas temos também outros desafios, pois há um debate também no Senado Federal sobre a tese do marco temporal e tem também outros pontos que os ministros levantaram nos seus votos, como a questão da indenização prévia e atividades econômicas dentro de terra indígena”, afirmou à RFI Dinamam Tuxá, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil.

“Vai vir muito ataque. Mas nada vai impedir a gente de lutar. Temos entre nós comunicadores, advogados, professores. Quem sabe um dia, o nosso sonho também, ter indicação de ministros. A gente sabe muito bem as pautas que estão dentro do Congresso, mas a gente vai lutar para inserir também os nossos deputados federais, estaduais, prefeitos e quem sabe nosso presidente”, disse Caíque Wapichana.

Aborto

Poucas horas após findar o julgamento do marco temporal das demarcações, o STF deu início ao julgamento do assunto que figura entre os maiores tabus do país hoje: o aborto.

Em mais de cem páginas, a presidente da corte, ministra Rosa Weber, votou pela descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. “A criminalização do ato não se mostra como política estatal adequada para dirimir os problemas que envolvem o aborto”, justificou Weber.

"Fomos silenciadas! Não tivemos como participar ativamente da deliberação sobre questão que nos é particular, que diz respeito ao fato comum da vida reprodutiva da mulher, mais que isso, que fala sobre o aspecto nuclear da conformação da sua autodeterminação, que é o projeto da maternidade e sua conciliação com todos as outras dimensões do projeto de vida digna”, argumentou a ministra.

O voto de Weber foi publicado no site do STF nesta madrugada, mas não significa que o assunto será analisado com celeridade por seus colegas. Como Weber se aposenta em dez dias, ela pautou o tema no plenário virtual da corte para deixar registrado seu voto. Porém, um assunto que gera tanta polêmica será julgado no plenário físico, com espaço para a fala das partes interessadas e para o debate público.

“É muito mais uma situação pessoal da ministra, que fez questão de se posicionar sobre o tema e deixar registrado seu voto do que uma imposição de agenda do STF. Se a corte vai analisar a questão do aborto no próximo mês, daqui semanas ou daqui a um ano, o voto dela já está dado nessa matéria. A meu ver a corte ainda levará um bom tempo para decidir essa questão, não é resultado para sair agora”, ressaltou à RFI o analista político Alexandre Bandeira.

“Essa pauta de costume nunca é decidida no sistema virtual, na calada da noite, sem maiores debates. Eles em geral dão mais ênfase e divulgação nesses casos. E sobre essa discussão em torno da judicialização de tudo, digo que não existe vácuo na política. Enquanto o Congresso não se manifesta sobre certos assuntos, temos visto sim o STF tentando dar a última palavra sobre vários assuntos, até sobre o Legislativo. Agora o judiciário age quando alguém que têm as credenciais recorre à corte”, afirmou Bandeira.

Previsão indefinida

O pedido para que o assunto siga para o plenário físico já foi protocolado pelo ministro Roberto Barroso, próximo a assumir a presidência da corte. Quando a descriminalização do aborto realmente entrará em pauta não se sabe, até porque as pressões de políticos e entidades contrários têm sido altas.

“Por que o Congresso ainda existe? O Supremo decide tudo por nós. Para quê gastar dinheiro com o Legislativo se o STF é quem decide. A nossa Constituição garante o direito à vida desde a concepção, mas isso não vale nada. Eleitores me perguntam o que eu posso fazer para impedir a liberação do aborto. Eu digo que nada, porque o STF é quem está legislando”, criticou o deputado Kim Kataquiri (União Brasil).

“As mulheres no Brasil abortam, quer queiram, quer não. E essas mulheres têm religião, são católicas, evangélicas. Muitas têm filhos. Isso foi mostrado por pesquisa séria, científica da Universidade de Brasília. Só que as mulheres com dinheiro fazem, com segurança, ninguém fica sabendo. As pobres vão presas ou morrem. Espero que o STF mude isso reconhecendo a autonomia da mulher”, afirmou a deputada Sâmia Bomfim (PSOL/SP).

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