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Entenda por que tese da legítima defesa da 'honra' não protege mais assassinos de mulheres no Brasil

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Soraia Mendes é pesquisadora, jurista, especialista em criminologia feminista e PhD em direito, Estado e Constituição. Ela é uma das advogadas que co-assinou o pedido ao Supremo Tribunal Federal de inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra, argumento que era utilizado para absolver acusados de feminicídio. Com a decisão unânime do STF, homens que assassinam mulheres não podem mais se esconder da Justiça no Brasil sob pretexto da "honra".

Soraia Mendes é advogada, jurista, pesquisadora, PhD em Direito, Estado e Constituição e especialista em Criminologia Feminista.
Soraia Mendes é advogada, jurista, pesquisadora, PhD em Direito, Estado e Constituição e especialista em Criminologia Feminista. © Aline Bittencourt
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RFI: Por que que foi importante aprovar a inconstitucionalidade desse argumento no Brasil? 

Soraia Mendes: Veja, é bem importante que se entenda que não existe na lei brasileira desde 1830, como Código Criminal do Império, a chamada tese da legítima defesa da honra. Isso era algo previsto nas antigas ordenações filipinas e que já não tem mais previsão legislativa desde o século 19. O problema é que isso continua presente na cultura jurídica brasileira, enquanto maneira de argumentar, de justificar o ato de matar uma mulher em função do ciúme, em função da traição. Essa decisão do Supremo é então extremamente importante, na medida em que ela sinaliza primeiro a proibição da utilização desse recurso retórico, ou seja, de que se alegue essa tese da honra, em qualquer alternativa, em qualquer possibilidade, em qualquer instância de julgamento, e, enfim ela acaba por realizar uma transformação profunda na argumentação dos próprios agentes judiciários. Até então, essa tese de "defesa da honra" era muito usada na cultura patriarcal que nós temos, sendo muito aceita pelos júris populares. 

Essa tese era utilizada justamente para que se mantivesse a impunidade, ou seja, a inocência daqueles homens que matavam as suas ex-companheiras, namoradas, esposas

RFI:  Essa tese da legítima defesa da honra servia como atenuante para os assassinos de mulheres?

Soraia Mendes: Na verdade, usava-se essa chamada tese da legítima defesa da honra como um argumento. Mais do que atenuante, ela era utilizada como um argumento justificador. Essa tese era utilizada justamente para que se mantivesse a impunidade, ou seja, a inocência daqueles homens que matavam as suas ex-companheiras, namoradas, esposas, enfim, como um recurso argumentativo. Mas, no mês de setembro de 2020, chegou ao Supremo Tribunal Federal um caso muito, muito peculiar de um homem que réu confesso, havia matado a sua companheira em função do ciúme, quando ela saía de um culto religioso. Esse caso acabou virando um alerta e um marco dentro da instituição.

RFI: E a recíproca era verdadeira, uma mulher quando assassinava, por exemplo, um homem, seu marido, ela poderia usar esse recurso de defesa? 

Soraia Mendes: Não. Não temos registros nesse sentido, até porque essa cultura se constrói a partir da legitimação masculina; como quando estava prevista até o século 19, a autorização do homem para que pudesse matar a sua esposa e sua eventual amante, em caso de "ofensas à honra". E com relação à amante, diga-se de passagem, não se tratava de qualquer amante, porque se ela pertencesse à nobreza, ela não poderia ser morta. A sociedade não se constrói a partir de uma generalização, de uma equalização, ela não se constrói a partir da igualdade. A sociedade patriarcal se constrói justo a partir da desigualdade e da submissão feminina. Então não há possibilidade de você encontrar espaço para pensar outras situações que não a de submissão total da mulher em relação ao homem de maneira a legitimá-lo a matá-la, nesse caso. 

O efeito imediato é a nulidade de todo e qualquer ato processual e, eventualmente, todo processo em que tenha sido utilizada esta tese.

RFI: Quais os efeitos imediatos desta decisão do STF?

Soraia Mendes:Supremo Tribunal Federal agora julgou definitivamente, mas é importante entender que essa decisão vem desde 2020, quando nós ingressamos com uma ação e obtivemos uma liminar, que foi ratificada também por unanimidade, cujo efeito imediato foi a de proibir a utilização da tese da legítima defesa da honra em quaisquer processos, de quaisquer instâncias processuais. Então, o efeito imediato é a nulidade de todo e qualquer ato processual e, eventualmente, todo processo em que tenha sido utilizada esta tese.

RFI: Na sua opinião, por que demorou até 2020 para a que a sociedade brasileira se organizasse e entrasse com essa ação, com esse pedido de revisão?

Soraia Mendes: É que na realidade, a gente precisa respeitar as dinâmicas dos movimentos sociais e da forma organizativa que se dá o próprio feminismo. Isso é entender que o feminismo é movimento. E ele é também perspectiva teórica e de atuação junto aos diversos, como o poder judiciário. Eu, como advogada, escrevo sobre isso há mais de 10 anos. Mas mudanças desse tipo não podem surgir do brilhantismo de qualquer advogado ou da própria corte. Elas devem surgir do amadurecimento das discussões que são feitas a partir dos próprios direitos, a partir de um amadurecimento. Nós não podemos entender o poder judiciário apenas como um mecanismo de resolução de conflitos. Para esse tipo de conflito, nós precisamos é de uma mudança cultural.

RFI: Será que essa decisão pode no futuro ajudar a coibir ou inibir a prática do feminicídio no Brasil? 

Soraia Mendes: A gente não pode negar que sim, agora o que nós não conseguimos é medir esse impacto, de como uma decisão como essa pode agir em relação àqueles que são agressores. Eu acredito que nós tenhamos um outro efeito, que é um efeito fundamental, que é de atingir diretamente a própria formação jurídica brasileira. Porque, observe, se isso era utilizado, era também porque havia essa crença de que a defesa da honra tem alguma fundamentação capaz de legitimar esse tipo de ato. Então eu acredito que a gente ganha com a decisão, e não só por aquilo que vai provocar na sociedade de uma forma geral, mas também no que vai provocar naqueles que são os atores e atrizes do próprio sistema jurídico. 

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