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“Temos quase um campo de refugiados em cada grande cidade brasileira”, diz Patrícia Melo na França

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Ela é uma das escritoras brasileiras contemporâneas de maior visibilidade no exterior, com traduções em várias línguas de seus livros, entre eles “Inferno”, prêmio Jabuti em 2001. Em seus romances, a autora retrata a realidade da violência social e urbana nas metrópoles do país. Ela conversou com a RFI em Biarritz, no sudoeste da França, onde foi uma das convidadas do Festival de Cinema Latino-Americano, encerrado em 2 de outubro e que este ano teve como foco o Brasil. 

A escritora Patrícia Melo conversou com a RFI Brasil no Festival de Cinema Latino-Americano de Biarritz, no sudoeste da França.
A escritora Patrícia Melo conversou com a RFI Brasil no Festival de Cinema Latino-Americano de Biarritz, no sudoeste da França. © Maria Paula Carvalho
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Maria Paula Carvalho, enviada especial à Biarritz

Em “Menos que um”, seu último trabalho, Patrícia Melo escreve um texto provocador para denunciar a apatia e a indiferença que marcam a sociedade brasileira diante das dificuldades atuais, o descaso com a desigualdade e a violência social. “’Menos que um’ é uma espécie de reportagem ficcional da realidade das pessoas que vivem nas ruas de São Paulo”, explica a autora. “Eu fui lançar meu penúltimo romance – "Mulheres Empilhadas" – no Brasil, em 2019, e fiquei muito impressionada ao ver como aumentou essa população de rua”, afirma. “Depois eu soube que não era só em São Paulo, mas no Rio de Janeiro, todas as grandes capitais enfrentam esse problema. E, ao mesmo tempo, com uma normalização disso pela própria sociedade”, lamenta.

Patrícia Melo descreve as batalhas cotidianas por sobrevivência de vários personagens das ruas como camelôs, flanelinhas, desempregados, alcoólatras, ladrões, catadores de lixo. “Os brasileiros veem isso como se fosse normal.  A gente tem quase que um campo de refugiados em cada grande cidade brasileira”, alerta. “E as pessoas ficam indignadas e se mobilizam quando acontece algo na Ucrânia, tentam ajudar campos de refugiados na Europa e eu vejo que a relação com a realidade interna é outra”, compara.

Lançado pela editora Leya (2022), o livro consumiu quase dois anos de trabalho da autora, que mora na Suíça desde 2010. Entre os personagens de “Menos que Um” estão uma miríade de tipos, como Douglas, que acredita na bondade sem religião; Seno, que despreza as pessoas que "procriam como ratos"; Jéssica, que sonha em parir um bebê-futuro; Glenda, que sonha em ser feliz como mulher e não como Weverton; Dido, que divide sua comida com um cão; e Regiana, que interpreta a Bíblia, entre outros.

“A rua é uma mãe”

“A gente conhece essas pessoas, só não sabe os nomes delas. Você vê essas pessoas o tempo todo, elas estão ali vendendo coisas, pedindo, se prostituindo, se drogando, trabalhando”, relata a autora. “Grande parte das pessoas que está na rua está trabalhando. Lógico que é um emprego informal, são pessoas que perderam o que tinham. Com a crise e a pandemia, não puderam pagar aluguel, foram despejadas e jogadas na rua com a família inteira. Quem mora na rua diz que a rua é uma mãe, pois ela aceita todos. Mas a vida na rua é muito cruel”, acrescenta. “Uma vez, o padre Júlio Lancellotti perguntou para um garoto como é a rua, e ele respondeu: ‘A vida na rua é um corredor cheio de portas... fechadas’”.

O romance destaca, porém, que debaixo da sujeira, do vício, da fome, do frio, da invisibilidade, da violência, do medo e da solidão, esses homens, mulheres e crianças são pessoas que também sonham, ou já sonharam um dia. “Ninguém aceita uma vida tão destituída de valor, porque ela é destituída de humanidade. Quando passa e desvia o olhar, você desumaniza uma situação muito problemática”, afirma a autora.

“Jorge Amado foi muito inspirador para mim com o ‘Capitães da Areia’. Só que o Jorge escreveu sobre um bando de garotos que vivia na praia, marginalizados, sem nenhuma proteção do Estado”, compara, citando a obra publicada pelo escritor baiano em 1937. “O Estado e a própria sociedade acabam retirando a cidadania dessas pessoas. Elas não têm direito a ter direito. Mas como seres humanos, eles sonham e querem sair daquela situação. Ninguém vive na rua porque quer: você é jogado na rua”, completa.

Realidade "sem filtros"

Em “Inferno” (2000), Patrícia Melo já trazia uma escrita realista ao retratar um traficante dono de morro. “Mulheres Empilhadas” (2019), seu penúltimo romance, também havia feito um retrato contundente da tragédia social brasileira, ao abordar um tema delicado: a matança de mulheres.

A autora acredita que o fato de viver na Europa ajuda a enxergar a realidade brasileira. “Eu acho que acirrou essa minha percepção. Eu ficava impressionada com histórias de turistas que tinham medo de ir ao Brasil. Você vivendo lá, acaba naturalizando situações que não são naturais. Você cria filtros e quando eu venho para a Europa, esses filtros vão se dissolvendo e eu passo a ver a sociedade com toda a crueldade e complexidade que ela tem,” diz a autora.

Patrícia Melo diz que em 60 anos de vida e 40 como escritora nunca viu “o Brasil tão estilhaçado”. "Eu sempre tive muita dificuldade de pensar que a arte tem uma função social. Eu acho que arte é arte e independe de qualquer coisa. Mas, vivendo no Brasil nesse momento histórico, eu sinto que é quase uma obrigação moral e a literatura é, sim, um espaço de resistência para você, no mínimo, denunciar essas situações e fazer com que elas sejam discutidas e debatidas”, diz. “Quando eu penso no Brasil de hoje, eu me sinto deprimida, porque a gente sempre teve esse desejo de um Brasil grande, um Brasil do futuro, que nunca aconteceu”, conclui.

A escritora Patricia Melo foi uma das convidadas do Festival de Cinema Latino-Americano de Biarritz, que aconteceu de 26 de setembro a 2 de outubro. Ela falou de seus romances no Salão dos Embaixadores, no Cassino Municipal. Patrícia Melo é uma das autoras brasileiras contemporâneas de maior visibilidade no exterior, com seus livros traduzidos em várias línguas.
A escritora Patricia Melo foi uma das convidadas do Festival de Cinema Latino-Americano de Biarritz, que aconteceu de 26 de setembro a 2 de outubro. Ela falou de seus romances no Salão dos Embaixadores, no Cassino Municipal. Patrícia Melo é uma das autoras brasileiras contemporâneas de maior visibilidade no exterior, com seus livros traduzidos em várias línguas. © Maria Paula Carvalho

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