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Brasil está na contramão da história ao não garantir direitos a uberizados, afirma pesquisador

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Ao longo de mais de uma década como auditor do trabalho, o economista Vitor Araújo Filgueiras acumulou casos e conhecimento sobre o cotidiano dos trabalhadores e os abusos cometidos em diferentes empresas. Hoje, como professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia), ele é taxativo ao dizer que a uberização das atividades profissionais radicaliza a precarização que já existia na terceirização do trabalho. E mais, considera que o Brasil está na contramão da história ao não garantir direitos aos empregados.

Motoristas de Uber bloqueiam as ruas de Bruxelas durante manifestação na Bélgica
Motoristas de Uber bloqueiam as ruas de Bruxelas durante manifestação na Bélgica © Kenzo Tribouillard AFP/Arquivos
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Em seu livro "É tudo novo, de novo: as narrativas sobre grandes mudanças no mundo do trabalho como ferramenta do capital", lançado pela editora Boitempo, o pesquisador argumenta que as narrativas que falam sobre um novo mercado de trabalho que precisa de novas regras escondem realidades de profunda precarização.

Nessa entrevista concedida à RFI, ele fala sobre a dificuldade de fiscalização e punição de empresas terceirizadas, os laços da cadeia de terceirização com formas de exploração que chegam ao trabalho escravo e sobre os riscos assumidos pelos trabalhadores ligados a plataformas.

Confira abaixo os principais trechos desta conversa:

RFI – No seu livro, você trata da chamada flexibilização dos direitos trabalhistas e as formas de trabalho terceirizado e uberizado. Para começar, o que são essas narrativas de novo e o que há de novo nelas?

Vitor Filgueiras – Há um conjunto de retóricas que as empresas e seus representantes têm mobilizado nos últimos anos com o intuito de, ao trazer a ideia da novidade, que as coisas estariam se transformando de forma estrutural no mercado de trabalho, [e que] trabalhadores e suas instituições deveriam se adaptar a essas ditas novidades.

E se adaptar de que forma? Mudando as legislações, com as tais reformas trabalhistas, mudando a postura individual, mudando a forma de organização dos trabalhadores. Nas narrativas das empresas, essa adaptação dos trabalhadores e da legislação levaria à melhoria do emprego e das condições de trabalho.

No entanto, empiricamente o que se constata é que quando essas prescrições são aceitas, elas não alcançam os fins declarados. Pelo contrário, elas ajudam a legitimar uma ofensiva contra o direito do trabalho, contra a organização dos trabalhadores e contra todas formas de atenuação da assimetria que existem entre o capital e o trabalho de modo geral.

"É tudo novo, de novo", livro de Vitor Araújo Filgueiras publicado pela editora Boitempo
"É tudo novo, de novo", livro de Vitor Araújo Filgueiras publicado pela editora Boitempo © Boitempo/Divulgação

RFI – A reforma trabalhista feita no Brasil durante o governo Temer aumentou, entre outras coisas, a possibilidade de terceirização de postos, além de flexibilização de jornadas. Você trabalhou por muito tempo como auditor do trabalho. Que tipos de problemas aparecem com o avanço da terceirização?

VF – A terceirização é um elemento central da narrativa da novidade a partir dos anos 1980 e 1990. O elemento fundamental do argumento é que as empresas precisam externalizar parte de suas atividades e se especializar, subcontratando outros agentes. Com frases muito repetidas, como a clássica “agora vamos nos concentrar em nosso core business”.

Acontece que as pesquisas mostram que essa narrativa não se concretiza. As empresas contratantes continuam gerindo a força de trabalho, continuando tendo o poder e dando as ordens. A novidade é que este modelo de contratação da força do trabalho [por uma terceirizada] dificulta a imposição de limites à exploração do trabalho.

Isso porque dificulta a atuação de fiscalização pelas instituições do Estado para a imposição da legislação, dificulta a organização coletiva dos trabalhadores para resistir à pressão patronal e dificulta a resistência individual, pois os trabalhadores com contratos mais precários têm menos chances de resistir aos abusos patronais.

A precarização das condições de trabalho, o adoecimento, os salários mais baixos são uma consequência lógica da terceirização.

Uma das pesquisas que realizei durante cinco anos indica que 90% dos casos de trabalho análogo ao escravo atingiam trabalhadores terceirizados. Então, mesmo nas formas extremas de exploração, os terceirizados são aqueles que mais são submetidos ao trabalho escravo.

Pesquisas feitas em outros setores, como call center, mostram que os operadores de telemarketing terceirizados adoecem mais. Na construção civil, mesmo realizando as mesmas funções, os que mais morrem são os trabalhadores terceirizados.

Um dos argumentos usados pelas empresas é que há mais mortes entre os terceirizados porque as funções são diferentes. O que a gente apura é que as funções mais arriscadas são terceirizadas de propósito, mas mesmo quando você identifica as mesmas funções sendo realizadas, os trabalhadores terceirizados são aqueles que mais adoecem e morrem.

RFI – Nos últimos anos tem crescido a uberização do trabalho, este modelo em que o trabalhador se coloca à disposição em uma plataforma e recebe trabalho através desta plataforma. A estimativa é de que já sejam 4 milhões no Brasil. Por que você considera perversa a ideia de tratar esse trabalhador como um tipo de empreendedor?

VF – A uberização é uma radicalização da terceirização. A empresa, chamada de plataforma, agora não é mais quem externaliza a atividade e se especializa. Na narrativa dessas empresas agora ela só faria a intermediação entre consumidores e os trabalhadores-fornecedores.

A partir desse argumento, elas vão tentar convencer os trabalhadores que eles são empreendedores e que a plataforma é apenas um instrumento de intermediação. E isso é martelado o tempo todo. Só que quando vamos analisar o mundo real, vemos que essas plataformas controlam completamente o processo de produção e de gestão do trabalho, o preço do serviço, os horários, e todos os mínimos detalhes. Este controle acontece de forma inclusive muito mais precisa porque a plataforma como instrumento informacional permite que ela monitore todos os pequenos aspectos das tarefas realizadas, da velocidade, do deslocamento.

Os trabalhadores nunca foram tão subordinados. E a retórica de que eles são empreendores só aprofunda essa subordinação porque à medida que as empresas transferem parte dos riscos aos trabalhadores, os trabalhadores se sentem impelidos a trabalhar cada vez mais. Ele não tem garantia de renda nenhuma. Se estiver trabalhando e levar um tiro, vai ficar sem renda até melhorar, caso sobreviva.

A empresa deixa todos os riscos com o trabalhador, mas o controla o tempo todo. Então se esse trabalhador pisar fora da linha [traçada pela empresa], ele é dispensado sumariamente, sem explicações. Uma das pesquisas que fizemos indica que a grande maioria dos trabalhadores já foi ou conhece alguém que foi bloqueado por estas empresas e não consegue uma justificativa para saber qual a razão do bloqueio.

RFI – Tivemos diversas manifestações recentes desses trabalhadores, entregadores ou motoristas, pedindo sobretudo aumento nos valores de remuneração via plataformas. Este é o caminho para reduzir a precarização?

VF – Essa é uma questão fundamental. O fato de que as manifestações sejam pautadas pelo aumento das remunerações, ou melhor, das “taxas”, é um elemento que revela como a narrativa penetra nos trabalhadores. A despeito deles lutarem contra as condições precárias de trabalho, eles não atingem a fonte da precarização, que é classificação que eles recebem, não como trabalhadores assalariados, mas como autônomos. Essa é uma discussão no varejo, sobre o valor da remuneração, mas que não atinge o cerne que é o fato desses trabalhadores não terem direitos porque não são empregados.

O ponto de partida para essa discussão é que essas empresas assumam esses trabalhadores enquanto os assalariados que eles são. Se não, vamos ter mobilizações e lutas. As taxas podem subir um pouco, mas daqui a seis meses os problemas serão os mesmos e sem os direitos.

RFI – Em todo mundo, esse ponto tem sido questionado na Justiça, com diversas decisões em prol dos trabalhadores para que as empresas donas das plataformas assumam esses empregos.

VF – Isso é uma tendência mundial, já acontece na Europa, nos Estados Unidos e em outros países. O Brasil está na contramão desta história.

O caso da Espanha é exemplar. A decisão do Tribunal Supremo da Espanha reconheceu que estes trabalhadores são empregados, e então agora eles têm acesso a direitos. Posteriormente, veio uma legislação só para especificar e reforçar este entendimento que já existia na decisão.

Essas empresas têm tentado no Brasil criar novas legislações para rebaixar o mínimo dos direitos trabalhistas. Algumas dessas estão presentes em outros países, aplicam a regra e já têm seus trabalhadores como assalariados e, inclusive, usam isso como propaganda.

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