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Técnico brasileiro que ganhou Copa da Ásia vira personagem de livro italiano

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Jorvan Vieira é um técnico pouco conhecido no Brasil. No entanto, este brasileiro nascido em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, filho de imigrantes portugueses, marcou a história do futebol no mundo. Em 2007 ele venceu a Copa da Ásia com a seleção do Iraque. A vitória iraquiana é considerada entre as maiores “zebras” de todos os tempos.

Jorvan Vieira, treinador de futebol
Jorvan Vieira, treinador de futebol © Captura de tela
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Na época o ex-ditador Saddam Hussein havia acabado de ser executado por enforcamento, o país sofria a ocupação das tropas anglo-americanas, além do conflito entre diferentes etnias e religiões. A conquista deste troféu foi determinante para a vida do diretor técnico com longa carreira comandando equipes do Oriente Médio. Até hoje, com 68 anos, ao lembrar de alguns episódios, ele se emociona com lágrimas nos olhos.

Jorvan encontrou a RFI Brasil em Roma durante a apresentação do livro “Il gol lo dedico a Bush” ("Dedico o gol a Bush"), em que é protagonista. No livro, publicado na Itália pela editora Castelvecchi, os autores Max Civili e Diego Mariottini contam como o país devastado pela guerra conseguiu conquistar uma importante vitória no futebol.

Para Jorvan Vieira, não foi fácil reunir curdos, xiitas e sunitas em uma única seleção. Ele acredita que foi predestinado a esta missão, e cita a palavra Maktub, que em árabe significa destino. 

“Todos nós temos um destino em nossas vidas, seja para nascer, seja para ficar doente, seja para morrer. Esse Maktub foi destinado para mim, eu tinha a missão de dar alegria a um povo. O país vivia em guerra, havia divisões entre os próprios curdos, xiitas e sunitas. Eu tinha que pegar uma seleção como um quebra-cabeça e transformar tudo isso em uma peça única que poderia dar frutos, vitórias, alegrias, felicidades. Não eram três peças, eram várias peças. Não foi fácil porque os jogadores sofriam a dor interior de uma guerra. Cerca de 90% do meu grupo de trabalho, do staff, já tinha perdido entes queridos neste conflito. Eram pessoas que tinham cicatrizes muito profundas que nenhuma cirurgia plástica poderia corrigir. Foi muito difícil convencê-los que estávamos ali para jogar futebol.”               

Em 2007 Vieira havia recebido também a proposta de treinar um clube na Arábia Saudita, mas optou pela seleção do Iraque porque acreditava que o país tinha possibilidade de vencer o torneio.

“Meu empresário me contatou e explicou que o clube saudita pagava muito mais. No entanto, respondi que preferia a seleção do Iraque porque conhecia os jogadores e sabia que poderíamos vencer. Quando assinei o contrato, eu disse ao presidente: 'Não tem prêmios para as vitórias?' Ele sorriu e me respondeu: 'Mister Vieira, nós nunca passamos das quartas de final.' Então eu ressaltei que iríamos ser campeões. No meu primeiro encontro com os jogadores, disse com firmeza que eu estava ali para ser campeão. Expliquei que quem não quisesse ser campeão, a porta de saída estava aberta. Dei um ultimato para a situação dos curdos, sunitas e xiitas. Ou seja, ou eles se uniam para ganhar, ou não jogariam comigo”.

Devido ao perigo de atentados no Iraque, a preparação da seleção iraquiana teve que ser feita em outros países. 

“A situação no Iraque estava se deteriorando. Os jogadores começaram a ter medo de estar no país. Mesmo que tivéssemos uma proteção bélica muito grande em torno a nós, não era suficiente, porque alguma coisa poderia acontecer. Portanto, ficávamos mais tempo entre Jordânia e Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, para preparar a equipe tecnicamente, taticamente, psicologicamente. Precisávamos reforçar a nossa confiança para competir e ganhar, e não simplesmente competir”.

Lágrimas nos olhos

Em sua longa carreira, Jorvan Vieira treinou 23 clubes e seleções de países como o Iraque, Omã, Kwait, Malásia e Marrocos. Sem dúvida, a vitória da Copa da Ásia é a que mais lhe sensibiliza. Até hoje ele usa um colar com um pingente de ouro com a forma do mapa do Iraque, e se emociona quando conta a história.

Depois de vencer da Copa da Ásia em 29 de julho de 2007, a seleção iraquiana deveria viajar para Bagdá. Mas antes do Iraque, teve ir a Dubai porque o xeique Mohammed bin Rashid Al Maktoum - atual primeiro-ministro e vice-presidente dos Emirados Árabes Unidos desde 2006 - ofereceu uma festa para comemorar a vitória com a grande colônia iraquiana residente nos Emirados Árabes Unidos.

“Toda hora tínhamos que descer à recepção do hotel em Dubai porque os numerosos iraquianos queriam tirar fotos, nos beijar, nos abraçar. De repente, uma menina com cerca de sete anos de idade se aproximou de mim. Ela puxou as calças do meu agasalho da seleção e me deu uma caixinha com esta joia. Eu nunca mais tirei. É difícil conter a emoção”, ressalta com lágrimas nos olhos.

Outro importante episódio que ele enfatiza foi quando a seleção iraquiana venceu nas semifinais a Coreia do Sul por 4-3 nos pênaltis. O jogo foi realizado na Malásia, um dos quatro países sede do torneio, junto com Indonésia, Tailândia e Vietnã.   

“Nas comemorações da vitória contra a Coreia do Sul, uma bomba explodiu nas ruas lá em Bagdá. No atentado morreu um menino. Nós tínhamos decidido não jogar mais por causa da sua morte. A mãe dele veio a público e pediu que nós continuássemos a jogar e ganhássemos a competição.

A nossa vitória representou muita coisa para o povo iraquiano, um povo que sofria, que perdia entes queridos. Nenhuma guerra tem lógica, mas essa guerra só significava interesses financeiros, geopolíticos.

Lidar com estas coisa são completamente além do futebol. Porque o futebol é paixão, é amor, é também luta, não deixa de ser. A nossa vitória trouxe ao povo iraquiano a possibilidade de sorrir outra vez, porque o povo estava cansado de chorar.”

A saída do Brasil

Quando era criança, Jorvan Vieira perdeu o pai golpeado em um campo de futebol.

“Minha mãe ficou traumatizada com a morte do meu pai e insistiu para que eu estudasse Medicina. Entrei na faculdade, mas abandonei porque não queria ser médico. Então fui estudar Educação Física. Depois de formado, me dediquei ao futebol.”

No Rio de Janeiro, de 1968 a 1976, ele jogou no Vasco da Gama, no Petropolitano, no Bonsucesso e na Associação Atlética Portuguesa, clube em que também foi preparador físico em 1977. No ano seguinte, recebeu uma proposta que mudou sua vida.

“Eu tinha seis empregos como professor de Educação Física, típica situação de tantos professores no Brasil, que tem que se virar para manter a família. Em 1978 trabalhava na Associação Atlética Portuguesa no Rio de Janeiro, na Ilha do Governador, quando meu coordenador, Eduval Ponte, me disse que um clube árabe procurava um preparador físico que falasse e escrevesse fluentemente inglês. Ele me disse para ir encontrar o sultão, que era o presidente da Federação do Catar, em um hotel no Rio de Janeiro. Quando cheguei no encontro, o sultão me mostrou o contrato e uma pasta tipo 007 cheia de dólares dentro. Minhas mãos tremiam, era um dinheirão. Ele me pagou imediatamente. Aí eu fui embora para o Catar e depois nunca mais voltei ao Brasil, só de vez em quando, para passar férias.”  

Jorvan conta que recentemente recebeu uma proposta para trabalhar em um clube no Brasil, mas a negociação não foi concluída.

“Era um clube em que sou torcedor, mas acabou não vingando. Não sei se eu me adaptaria mais lá. Não sei. A gente nunca pode dizer que desta água eu não beberei. Mas a vida que eu tive mudou completamente da água para o vinho. Então fica mais difícil.”

Hoje Jorvan Vieira vive em Lousada, no distrito de Porto, no norte de Portugal, com sua esposa marroquina. O casal tem um filho, dois cães e um gato.

A amizade com Zico

O prefácio do livro “Dedico o gol a Bush” foi escrito por Arthur Antunes Coimbra, o Zico, que atualmente é diretor técnico do clube japonês Kashima Antlers.

“Foi um privilégio muito grande ter o prefácio escrito pelo Zico. Não só por ser um amigo, mas pelo grande senhor que ele representa para o futebol brasileiro e para o futebol mundial. Nós também fomos colegas na universidade no Rio de Janeiro, estudamos juntos. Eu também sou muito amigo do irmão dele, o Edu. Formávamos um grupo fantástico com Paulo Autuori, Cláudio Café, Luiz Carlos Prima, Jair Pereira, Paulo Paixão. Era uma turma riquíssima em termos de valores do futebol brasileiro, como treinadores e preparadores físicos.”

A conversão ao islã

Jorvan Vieira fala sete idiomas e trabalha há mais de 40 anos em países em que a maioria da população é muçulmana. Quando vivia no Brasil era ateu, mas depois se converteu ao islã.

“Eu não tinha religião, mas sempre respeitei todas as religiões. A opção de me tornar muçulmano foi pessoal, talvez por passar muito tempo vivendo em países muçulmanos e começar a ver como era a religião deles. Não digo que é melhor. Chega um determinado momento na vida que é preciso ter um equilíbrio emocional, religioso, para acreditar naquilo que você faz ou vai fazer. Nós precisamos ter uma fé não só em Deus, mas em uma religião que traga segurança e apoio para aquilo que se determina. Então eu fiz essa opção. A minha esposa é marroquina, mas eu não me tornei muçulmano para poder me casar com ela. Quando eu a conheci, eu já era muçulmano”.

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