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Falta de carnaval deixou sociedade brasileira com sensação de vazio, diz antropólogo Roberto DaMatta

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Devido à pandemia, as autoridades públicas do Brasil foram obrigadas a decretar o cancelamento de todas as festividades ligadas ao Carnaval, tornando a quarta-feira de cinzas um dia praticamente normal. Essa situação excepcional provocou na sociedade brasileira uma sensação de grande vazio, de acordo com o antropólogo Roberto DaMatta, um dos maiores especialistas do tema no país.

O antropólogo Roberto DaMatta.
O antropólogo Roberto DaMatta. ebc.com.br
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"O impacto mais visível, obviamente, é o que está acontecendo comigo. Tenho 84 anos, não brinco carnaval há várias décadas, mas faz parte da minha vida desde criança e faz parte da minha visão de mundo", diz em tom de lamentação DaMatta, em seu apartamento em Niterói.

"O carnaval é um momento de liberdade", continua o antropólogo, autor do livro "Carnavais, malandros e heróis", um dos clássicos da literatura acadêmica, que ajudam a entender a importância da festa popular para o país que tem sua imagem e identidade associadas à essa celebração.

"O carnaval é um dos poucos momentos em que você pode sair de si mesmo em uma sociedade que é extremamente hierarquizada. Todas as obrigações, até das crianças com suas atividades familiares, por exemplo, são suspensas durante quatro dias de festa", comenta.

A ausência de cinzas em um carnaval que não aconteceu tem reflexo em uma data simbólica, que é um feriado que não é cívico, como o dia da Proclamação da República ou da abolição da escravatura, aponta o antropólogo.

"É uma sensação de um certo vazio. O carnaval é esse momento de liberdade, de excesso. Apesar de ser curioso, por não haver comida. O carnaval brasileiro não tem esse elemento de banquete, da comida farta, abusiva. É uma festa mais espiritual", lembra, justificando porque no país essa festa popular ganhou uma conotação tão erótica. "O erotismo tem um lado espiritual, tem um lado incontrolável, que faz com que um ciclo erótico ou sensual termine. Cada sociedade tem a sua maneira de ver isso", afirma.

Roberto DaMatta sublinha ainda um outro fator que agrava o sentimento de frustração associado à suspensão de qualquer atividade carnavalesca : a falta de vacina para toda a população.  

"A outra sensação, terrível aqui no Brasil, é que além de não ter carnaval, não tem vacina. Você não tem carnaval por causa da pandemia e não tem a vacina. E a cura objetiva da pandemia, que tem um elemento concreto, biológico, real, já que o vírus faz parte da realidade, da morte. Não é uma representação simbólica, é real e mata", diz. "Não tivemos carnaval e não sabemos quando vamos ter porque não tem vacina", diz, sem esconder sua irritação.

Segundo o intelectual, a preocupação com a pandemia, que "realmente mata" e provoca situações em que nem se pode cumprir os rituais tradicionais de sepultamento das vítimas diante das restrições sanitárias, " faz com que as pessoas tenham compreensão do cancelamento do carnaval. No entanto, o que Damatta considera uma reação "muito curiosa", e ao mesmo tempo "bem brasileira", que diz ter profetizado, são as aglomerações em locais públicos como praias e, no caso do Rio de Janeiro, em muitas favelas.

"Tem gente se encontrando na praia, nas comunidades faveladas, com bailes de até três mil pessoas. Isso mostra um desafio, que não é cívico, como acontece em países como a França, ou desafio ao poder político estabelecido. É um desafio que tem um elemento transcendental no sentido de que ‘será que eu vou pegar mesmo essa doença ?’. Isso  por que o carnaval é uma coisa inocente. É como eu deixar de beijar o meu avô: como posso ser o transmissor de uma doença para uma pessoa que eu amo ?", exemplifica.

"Os brasileiros têm essa ideia de que além das proteções sanitárias, objetivas, médicas, de vacinas, higiene, etc, nós somos protegidos também pelo nosso querer bem, pela amizade. É um axioma moral difícil conciliar o afastamento com o amor", teoriza.

Reprogramação do Carnaval

Na entrevista à RFI, Roberto DaMatta explica que pra os brasileiros, o carnaval representa ainda a liberdade de, ao menos durante quatro dias, se livrar do que chama de "máquina de hierarquizações" de um país muito elitista. Ele faz referência ao passado escravagista do Brasil para explicar o comportamento de muitas pessoas que desrespeitam as regras de convivência e de restrições impostas por autoridades públicas, mesmo neste período de pandemia.

"Quando um grupo de jovens se reúne para ir à praia contra essa norma de não brincar o carnaval por causa das restrições sanitárias, eles estão dizendo que são superiores. Ser superior em uma sociedade que durante cinco séculos teve escravos, que se desenvolveu com a escravidão negra, [e na qual] só quem obedecia antigamente eram esses ‘inferiores’. E o inferior do inferior era o escravo. E os senhores eram os superiores. A equação é óbvia. Quem faz as leis não as obedecem", argumenta. "É fundamental para entendermos porque nós somos chamados de indisciplinados, que não conseguimos seguir regras", acrescenta.

Apesar do cancelamento do Carnaval na data inicialmente prevista no calendário, muitas associações, clubes, prefeituras e governos não descartam a possibilidade de reprogramar a festa em outras datas, quando a situação sanitária permitir a aglomeração de pessoas.

"É muito complicado reorganizar esse Carnaval em outra data porque é um feriado. O teu trabalho, a data de um exame, vai ser suspenso porque o Carnaval mudou de data e você vai abandonar tudo? E na véspera do teu exame, vai tomar um porre carnavalesco ? Nada é impossível. Eu sei que as coisas mudam, mas dá trabalho. Essa transferência pode acontecer talvez em um final de semana, de sexta-feira a domingo. Talvez isso aconteça. Mas estou fazendo uma previsão e como todas as previsões, tem os seus percalços", finaliza.

Confira a íntegra da entrevista em vídeo clicando na foto

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