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Reportagem

Especialista brasileira em escravidão defende em Paris devolução irrestrita de objetos rituais pilhados de ex-colônias

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Ana Lúcia Araújo é historiadora e professora na Howard University, sediada em Washington, conhecida como a "Harvard negra", onde lecionaram nomes como a prêmio Nobel de Literatura Toni Morrison e onde se formou em 1986 a vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris. Seu último livro, The Gift (O Presente), investiga e retraça o papel institucional da troca de artefatos entre europeus e povos originários em um passado colonialista, cujos vestígios ainda encontram eco nos tempos atuais.

A pesquisadora Ana Lúcia Araújo e seu novo livro, "The Gift", assunto de seminário nesta sexta-feira (1°) na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) na região parisiense.
A pesquisadora Ana Lúcia Araújo e seu novo livro, "The Gift", assunto de seminário nesta sexta-feira (1°) na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) na região parisiense. © RFI/Marcia Bechara
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Especialista em tráfico negreiro no oceano Atlântico, a professora, escritora e pesquisadora brasileira Ana Lúcia Araújo conversou com a RFI após um seminário concedido a convite da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) de Paris e foi taxativa em relembrar que "o racismo específico contra os negros, da maneira como o entendemos hoje, nasceu inteiramente da escravidão e do tráfico de escravos no Atlântico".

RFI: Em francês usa-se a expressão "cadeau empoisonné" ("presente envenenado") para se referir ao que chamaríamos no Brasil de "presente de grego", o que faz pensar imediatamente no Cavalo de Troia, ou num presente que acaba causando desgraça. Seu livro, "The Gift", ecoa um pouco dessa troca de artefatos entre europeus e povos originários como um dispositivo perverso, e com objetivos bem específicos...

Ana Lúcia Araújo: Sim, a questão do presente é ainda muito atual. Por exemplo, a gente sabe que, hoje em dia, no caso do Brasil, existe muita discussão em relação à corrupção. É a questão do presente e receber presente, inclusive no serviço público. Não se pode receber presente, sem declarar, nesse caso. O presidente do Brasil, por exemplo, precisa declarar presentes, toda vez que os recebe.

O presente pertence ao Estado e inclusive recentemente tivemos o caso da ex-primeira dama do Brasil que recebeu joias que passaram de mão em mão, foram vendidas e tudo mais. Então, a questão do presente, ela faz parte dessas trocas diplomáticas, faz parte da nossa vida. Agora, no final do ano, quando a gente gosta de uma pessoa, como agradecer? Para uma pessoa, o presente é algo que a gente oferece, mas ele pode ser também entendido como como propina que se dá para alguém para receber alguma vantagem. E no caso da do tráfico atlântico, de africanos escravizados, para os europeus.

A pesquisadora Ana Lúcia Araújo e seu novo livro, "The Gift", assunto de seminário nesta sexta-feira (1°) na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) na região parisiense.
A pesquisadora Ana Lúcia Araújo e seu novo livro, "The Gift", assunto de seminário nesta sexta-feira (1°) na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS) na região parisiense. © RFI/Marcia Bechara

RFI: Uma questão mais crítica nesse passado não tão distante?

Ana Lúcia Araújo: Claro que o presente já existia em outras sociedades da antiguidade, mas os europeus usavam a questão do presente como uma forma de propina. Às vezes funcionava como um tipo de imposto que tinha que ser pago para começar o comércio nas costas africanas, e em outras ocasiões funcionava apenas como propina. Ao oferecerem presentes naquela época, os europeus esperavam alguma coisa em troca: que o tráfico de escravos se realize de maneira rápida, que sejam oferecidos para os europeus o maior número de cativos no menor período de tempo, ou que os cativos sejam saudáveis, porque quanto mais tempo que os europeus passassem na costa, mais chance teriam de ter perdas, mortes ou serem atacados, ou que os cativos pudessem morrer de doenças.

Então por isso a importância desse "presente", que é uma instituição que existe até hoje. Agora, nos Estados Unidos, existe discussão em relação ao Trump, o presente que ele recebeu. No Brasil existem essas mesmas discussões, na França também. Como seria esse bunker onde a presidência francesa guarda todos esses presentes diplomáticos?

RFI: Essa questão resvala de alguma forma no argumento reducionista, mas muito comum em alguns setores da sociedade brasileira, de que "a escravidão teria sido estimulada pelos africanos". Como desmistificar esse discurso?

Ana Lúcia Araújo: Eu acho que essa questão é muito importante. A escravidão, em primeiro lugar, e uma instituição que existia desde a antiguidade, existia na Grécia e Roma e em sociedades que hoje em dia a gente valoriza. A escravidão existiu durante toda essa história, até o final do século XV, que é quando os europeus chegam nas costas africanas. O que muda nesse momento é a chegada do tráfico atlântico de escravizados que vai se tornar racializado e vai ser localizado nessa parte da África, no sul do [deserto do] Saara, com a desculpa da cristianização de uma guerra santa, e em seguida vai se tornar uma questão econômica.

Mas o mito dessa história, que os africanos em geral eram cúmplices, é falso porque, antes de tudo, a África nunca foi um continente homogêneo, da mesma maneira que os franceses e os ingleses e os portugueses e os holandeses tinham interesses diferentes. Quando os europeus chegam nessas sociedades africanas, existem diferentes sociedades falando diferentes, línguas diferentes, com culturas diferentes.

Manifestantes da África subsaariana protestam contra a escravidão na Líbia em frente à embaixada da Líbia em Rabat, Marrocos, em 23 de novembro de 2017.
Manifestantes da África subsaariana protestam contra a escravidão na Líbia em frente à embaixada da Líbia em Rabat, Marrocos, em 23 de novembro de 2017. FADEL SENNA / AFP

E com a chegada dos europeus, a demanda que eles vão gerar por cativos africanos e o fornecimento de cativos para esse tráfico vai se intensificar de maneira exponencial. Então, obviamente que em todas essas atrocidades que foram cometidas em diferentes períodos da história, existem pessoas que colaboraram e tiraram vantagens desse tipo de transação. Mas o racismo contra pessoas que são negras é um racismo que emerge durante o período do tráfico de africanos escravizados, onde se coloca como sinônimo uma pessoa negra; antes do tráfico atlântico existiam escravos de diferentes origens, etnias e cor de pele.

A verdade é que a maioria dos africanos, a grande maioria foi vitimizada pelo tráfico. Existia uma parte da elite que se beneficiou e existiam intermediários que acharam uma vantagem em participar desse comércio; às vezes vem também no Brasil essa discussão de "ah, mas lá na Bahia existia um antigo escravo que virou proprietário de escravos". Mas é que era uma economia tão baseada na escravidão que a única forma de ter mobilidade social em alguns momentos era adquirir escravo. É um sistema perverso nesse sentido, porque ele racionaliza os africanos como sendo negros. Nesse momento, coloca eles como sinônimos de escravizados e ao mesmo tempo corrompe a sociedade.

RFI: O tráfico atlântico instaura o racismo contra pessoas negras?

Ana Lúcia Araújo: Sim, o racismo antinegro começa nesse período do tráfico já no final do século XV, quando os portugueses foram nas costas da África Ocidental e começaram a levar africanos primeiro para a Península Ibérica, ali onde é Portugal e também Espanha, e depois para o Brasil. Os portugueses, claro, também enviaram escravos para o Caribe, para outras regiões. Esse é o momento crucial.

RFI: Como você avalia a questão de objetos rituais pilhados por europeus a ex-colônias, que se discute muito atualmente?

Ana Lúcia Araújo: Existem pedidos de restituição que não são novos, na verdade, e que já existiam no momento da descolonização do continente africano. Existem vários tipos de momentos em que houve essa pilhagem de objetos e tesouros. Seja no caso africano ou nas Américas. Então existem essas demandas, que já começam nos anos 1960.

Esses objetos têm que ser devolvidos. É claro que existe tantas camadas nessa questão da pilhagem, como em casos de guerra. Mas existe, por exemplo, a questão dos bronzes do reino do Benin. Aquilo ali é um caso icônico, claro, mas os museus estão cheios disso. Nós estamos falando de milhares, centenas de milhares de objetos.

Eu estou passando um período na Holanda e é o que existe nos museus de lá, e nos museus da cultura do mundo. É preciso realizar estudos para saber quais desses objetos foram roubados, e para quais já existem pedidos de restituição.

Manto tupinambá do século 16, em exposição no Museu Real de Arte e História da Bélgica, em Bruxelas
Manto tupinambá do século 16, em exposição no Museu Real de Arte e História da Bélgica, em Bruxelas © Museu Real de Arte e História da Bélgica/Divulgação

Mas, em princípio, se eu roubei um objeto que é seu, não cabe a mim decidir o que você vai fazer com o objeto, se você vai queimar, se você vai destruir o objeto, se você vai vender.

São muitas, muitas camadas. Tendo observado um pouco essa questão agora, é claro que tem lugares onde ela está bem mais desenvolvida, em outros lugares trata-se de algo que não se quer discutir. Existe muitas vezes pedidos de restituição de uma minoria de objetos, ou objetos que são significativos. Existe o debate para onde e quem deveria receber esses objetos. Mas, em princípio, se eu roubei um objeto que é seu, não cabe a mim decidir o que você vai fazer com o objeto, se você vai queimar, se você vai destruir o objeto, se você vai vender. É uma questão que aqueles que vão devolver colocam, mas não é problema deles.

Existem coisas que talvez fosse importante enfatizar: não se trata somente de restituir, de devolver o objetos, mas existem tantas outras coisas que podem ser feitas. Por exemplo, dar assistência para os museus, no continente africano ou mesmo nas Américas, na América do Sul, principalmente, na América Latina, para preservar e  valorizar esses objetos.

Ou a criação de uma base de dados virtuais, onde as fotografias em alta resolução estejam disponíveis e que qualquer pessoa possa ter acesso, mesmo como no caso de pesquisadores. Por exemplo, se eu quero utilizar uma fotografia de um objeto africano que vem do British Museum, eu preciso pedir permissão, e geralmente preciso pagar alguma coisa para reproduzir essa foto. Então esse tipo de elemento também deveria fazer parte da restituição. 

RFI: Você poderia explicar um pouco sobre o objeto ritual que figura na capa do seu livro, "The Gift"?

Ana Lúcia Araújo: O objeto do qual eu falo é uma Kimpaba. É um tipo de espada ou faca cerimonial que foi criada no porto de La Rochelle por um artesão francês. Ela é feita de prata e foi dada como presente para um intermediador africano que se morava na costa onde fica presentemente Angola. Na época, era o porto de Cabinda, e esse presente foi uma forma de agradecimento a um grupo de traficantes de escravos franceses do porto de La Rochelle. Depois de um conflito entre diversos traficantes de escravos franceses, que acabaram por pilhar outros traficantes de La Rochelle, então é bem interessante porque mostra também como havia oposição, mesmo entre os franceses que estavam fazendo o tráfico de escravos.

Esse objeto seguiu para Cabinda em agradecimento a esse chefe e em seguida acabou sendo pilhado, não em Cabinda, mas em Habbo, onde é presentemente a República do Benin. E hoje em dia esse objeto está de volta à França. Ele foi vendido num leilão há em 2015 e agora está de volta no Museu do Novo Mundo de La Rochelle.

RFI: Passando pelo museu de La Rochelle, ou mesmo por outros museus europeus em outros países que evocam esse passado, sentimos um certo "mal estar da civilização", para usar a famosa expressão de Sigmund Freud. Mesmo que o olhar europeu atual tente compensar as pilhagens do passado colonialista com um olhar crítico sobre si mesmo, esse "mal estar" ainda ronda os corredores das instituições. Você sente ecos disso no momento atual? 

Ana Lúcia Araújo: Sim, com certeza. Eu sinto esse mal estar até em museus que são menores. E existe muitas vezes essa ideia de não falar na escravidão, de não falar em colonização. Muitas vezes as pessoas que estão visitando evitam falar disso, porque é muito fácil às vezes para o brasileiro falar de Portugal, para o francês falar da Inglaterra. Mas quando é a questão de olhar para sua própria sociedade, para sua própria cidade e para sua própria cor de pele e entender que você é o descendente de alguém que talvez tenha participado disso tudo, ou que você vive numa cidade que era central nesse tráfico, é uma coisa que faz parte de um desse mal estar.

Existe um mal estar e existe ainda uma resistência de dizer as coisas e de explicar como esse comércio evoluiu e a importância e o impacto que esse comércio ainda tem nos dias de hoje, justamente por essa questão do racismo. Eu estava visitando o Rijksmuseum e eles fizeram toda uma exposição ano passado sobre a escravidão no andar principal do museu. Existem então as legendas das pinturas enfatizando esse elemento, mas tem galerias embaixo no museu que são muito importantes, porque é o período que os holandeses estavam no Brasil no século XVII.

Nesse local, há armas de três metros de comprimento, lanças, espadas, revólveres, fuzis e tudo isso também com os modelos, com as maquetes desses navios. E tudo isso sem uma palavra sobre a escravidão, enquanto no andar de cima, a exposição é sobre a escravidão. 

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