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Reportagem

Programa Guatá leva pesquisadores indígenas brasileiros para intercâmbio na França

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Quatro estudantes que fazem doutorado no Brasil foram selecionados para o programa Guatá e passarão um ano trocando experiências em universidades francesas. A RFI conversou com dois deles, que apontaram políticas inclusivas, como ajuda financeira e cotas raciais, como decisivas para que saíssem de suas comunidades e chegassem até aqui. Eles cobram outras ações afirmativas, como provas do Enem mais acessíveis às comunidades originárias.

Sala de aula na Universidade Paris Nanterre, uma das instituições de ensino superior da França que acolherá estudantes indígenas brasileiros.
Sala de aula na Universidade Paris Nanterre, uma das instituições de ensino superior da França que acolherá estudantes indígenas brasileiros. RFI/William de Lesseux
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Raquel Miura, correspondente da RFI em Brasília

Eles cursam o doutorado em universidades públicas no Brasil e isso já os coloca como exceção num país onde a igualdade de acesso ao ensino superior é um desafio ainda a ser vencido. Além disso, como indígenas, enfrentaram vários obstáculos linguísticos, financeiros e culturais para chegar ao ensino superior. Agora, terão também no currículo a experiência de estudar fora do país.

“Estou feliz e também ansiosa para aprender assuntos novos, conhecer um sistema educacional diferente, trocar experiências e compartilhar minha visão sobre a Amazônia, como alguém que vive nesse lugar, alguém que faz parte e cresceu nesse lugar”, disse à RFI Alícia Patrine, do povo Kokamas, doutoranda em Doenças Tropicais e Infecciosas pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e uma das selecionadas para o programa.

O interesse que a floresta desperta lá fora, bem como a preocupação do mundo com a preservação da Amazônia e das comunidades originárias foram importantes na definição de um projeto voltado para os indígenas brasileiros, numa concepção de que educação é fundamental para a preservação cultural dos povos e que o intercâmbio internacional contribui para o crescimento acadêmico do aluno.

Os quatro estudantes foram selecionados para a fase piloto do projeto Guatá, termo que significa ‘viagem’ em tupi-guarani, numa parceira entre o governo francês, universidades brasileiras que aderiram ao programa e instituições de ensino superior da França, que vão receber os pesquisadores.

Além de Patrine, Mairu Hakuwi Kuady, que faz doutorado em Direito na Universidade de Brasília, Autaki Waurá, doutorando do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas, e Adriana Fernandes Carajá, que também faz doutorado em Antropologia Social, mas pela Universidade Federal de Minas Gerais, serão recebidos em duas instituições francesas de ensino superior, Paris 8 e Paris Nanterre.

“Eles vão receber uma bolsa mensal, a passagem aérea, a isenção do custo do visto, aulas de francês, bem como o acesso prioritário ao alojamento estudantil na França. Eu queria também sublinhar que ficamos muito felizes em ver que as universidades francesas tiveram um grande interesse em receber estudantes indígenas, porque esses alunos trazem uma riqueza e uma cultura muito grande. Vamos seguir com muito interesse na evolução do programa e lançaremos a segunda edição do Guatá em janeiro de 2024”, afirmou à RFI Sophie Jacquel, conselheira adjunta de cooperação e ação cultural da Embaixada da França em Brasília.

Suporte financeiro

Mairu Hakuwi, contemplado com uma bolsa nesse projeto, afirmou que o suporte financeiro é crucial para a permanência de jovens indígenas na faculdade. Ele deixou sua comunidade aos 16 anos quando ganhou a primeira bolsa de estudo, no fim do ensino médio, para aprimorar o português. Depois, na Universidade Federal do Tocantins, onde estudou Relações Internacionais, conseguiu se manter graças a uma ajuda de R$ 900,00, que usava para pagar aluguel, comprar livros, roupas, custear alimentação e transporte. Na pós-graduação, na Universidade de Brasília, também contou com a bolsa do Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, vinculado ao Ministério da Educação).

“Esse é o ponto principal, porque muitos jovens da minha comunidade não chegam até a universidade por conta da dificuldade financeira. É que não adianta, por exemplo, abrir vagas para indígenas e não ter uma política de permanência. Essa bolsa era assegurada em instituições federais, mas nos últimos anos até nas públicas houve alguns obstáculos, mais burocracia para atender os pedidos”, afirmou Hakuwi.

Enem ainda é excludente para indígenas 

O doutorando também ressalta que mesmo políticas que vieram para reduzir desigualdades na educação ainda não contemplam a realidade indígena, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). “A maioria das aldeias indígenas hoje possuem escolas, que chamamos de escolas interculturais, pois ensinam tanto aspectos das nossas tradições, das nossas línguas, mas também disciplinas convencionais, como biologia, matemática, português. Mas o Enem, mesmo com as cotas, ainda é altamente excludente para os povos indígenas, porque não olha as especificidades de cada povo. Jovens tentam uma vez, outra vez, aí se sentem desmotivados. A Universidade de Brasília tem um modelo de vestibular indígena próprio. Então acaba que há concentração maior de indígenas na UnB do que em outras universidades”, relata Mairu Hakuwi.

Alicia Patrine também fez questão de descrever como as políticas inclusivas fizeram toda diferença na sua trajetória acadêmica. “Eu sou filha de políticas de inclusão. Sou cotista, entrei pelo Enem na faculdade, depois eu virei bolsista do governo. Se não fossem essas políticas, eu não estaria aqui hoje, principalmente num país com tanta desigualdade. Inclusive a UEA, onde eu estudo, este ano sofreu um duro baque do STF, prejudicando ribeirinhos, indígenas, pessoas do interior do Estado”, disse ela, numa referência à decisão do Supremo Tribunal Federal que considerou inconstitucional a reserva de 80% das vagas da universidade estadual para alunos que fizeram o ensino médio na região.

Capacidade de protagonismo em qualquer área

Os pesquisadores também destacam a importância de representantes indígenas ocuparem postos-chave na produção científica, inclusive contando a própria história como protagonistas. “Não é se empoderar, mas produzir e acessar conteúdos e embasamentos científicos através das pesquisas e estudos. Estudos que visem a preservação da nossa cultura, que visem o armazenamento de informações, uma vez que o processo de colonização foi muito violento e durante muito tempo fomos marginalizados e esquecidos”, afirmou Patrine.

Os estudantes lembram que isso não significa reduzir a participação de pesquisadores e intelectuais indígenas a assuntos restritos aos interesses de sua comunidade. “Toda a temática da minha pesquisa é voltada para a nossa realidade. Somos nós falando sem intermediários sobre nossa história e cultura. Escolhi esses temas porque sinto que ainda é necessário, mas não podemos nos limitar a isso, como muitas vezes a sociedade tenta nos impor. Indígena não é só para cuidar da Funai. Temos capacidade para discutir política, economia, desenvolvimento em vários sentidos. E ocupar cargos públicos os mais diversos”, afirmou Hakuwi, que deseja trabalhar na área de relações internacionais.

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