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Reportagem

"Raiva da cultura" e extremismo político: destruição de obras de arte em Brasília é debatida na França

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É na França, no Palácio de Versailles, que fica a único relógio ainda existente feito por Balthazar Martinot, o relojoeiro do rei Luís XIV, depois que um exemplar exposto no Palácio do Planalto foi destruído, durante a invasão por vândalos, no domingo (8). Um debate, nesta quarta-feira (11) em La Rochelle, no sul da França, com a participação de geógrafos e historiadores, analisa a depredação em Brasília num contexto de “raiva da cultura” observada entre grupos radicais em todo o mundo.

Obras destruídas Brasília
Obras destruídas Brasília REUTERS - UESLEI MARCELINO
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Maria Paula Carvalho, da RFI

Desenhado por André-Charles Boulle, o relógio de mesa raro, que data do século XVII, foi um presente da corte de Luís XIV à família real portuguesa. A peça foi oferecida a Dom João VI e levada para o Brasil em 1807, quando o monarca transferiu a sua corte, após a invasão das tropas de Napoleão.  

O relógio de pêndulo do século XVII foi um presente da Corte Francesa para Dom João VI.
O relógio de pêndulo do século XVII foi um presente da Corte Francesa para Dom João VI. AP - Eraldo Peres

A relíquia exposta na França tem metade do tamanho da que ficava no terceiro andar do Palácio do Planalto, próximo ao gabinete do presidente, e que foi destruída pelos invasores. De acordo com uma nota da Presidência da República, será “muito difícil” restaurar o relógio. Uma estátua de Netuno, que ficava no topo, os ponteiros e os números foram arrancados.

"O valor do que foi destruído é incalculável por conta da história que ele representa”, diz o diretor de Curadoria dos Palácios Presidenciais, Rogério Carvalho, em nota. “O conjunto do acervo é a representação de todos os presidentes que representaram o povo brasileiro durante este longo período que começa com JK. É este o seu valor histórico", acrescentou Carvalho sobre os bens danificados. "Do ponto de vista artístico, o Planalto certamente reúne um dos mais importantes acervos do país, especialmente do Modernismo Brasileiro", destacou.

Entre as obras de arte que foram estragadas, está a pintura “As Mulatas”, uma das mais importantes de Di Cavalcanti (1897-1976). A principal peça do Salão Nobre do Palácio do Planalto, avaliada em R$ 8 milhões, foi encontrada com sete rasgos. Pinturas desta magnitude costumam alcançar valores até 5 vezes maior em leilões.

Ao menos seis perfurações foram feitas na obra As Mulatas (datada de 1962), que ficava numa parede do terceiro andar do Palácio do Planalto.
Ao menos seis perfurações foram feitas na obra As Mulatas (datada de 1962), que ficava numa parede do terceiro andar do Palácio do Planalto. AP - Eraldo Peres

“Essa destruição sistemática de obras de arte que tinham sido encomendadas para compor essa cena modernista e democrática testemunha um ódio à democracia e a diversidade, pois elas representam a diversidade religiosa, humana, social, cultural, etc. O projeto que existe atrás desses grupos bolsonaristas é a redução da cultura a uma única leitura, que constrói uma nação branca, com valores conservadores”, analisa Laurent Vidal, historiador e presidente do Centro Intermondes, onde acontece o colóquio “No Brasil dos Bolsonaristas, a raiva da cultura”, com entrada livre, nesta quarta-feira, às 18h30.  

A escultura em bronze "O Flautista", de Bruno Giorgi, avaliada em R$ 250 mil, também foi partida em pedaços. Assim como a escultura de parede em madeira de Frans Krajcberg, estimada em R$ 300 mil e que adornava o terceiro andar do palácio presidencial.

"A Bailarina", de Victor Brecheret (1894-1955), artista considerado o introdutor do modernismo na escultura brasileira, foi retirada do local onde estava exposta na Câmara dos Deputados e está desaparecida.

Em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal (STF), a escultura em granito "A Justiça", de Alfredo Ceschiatti (1918-1989), foi pichada.

O vitral "Araguaia", localizado no Congresso Nacional, também foi vandalizado. A obra de arte foi idealizada e produzida pela artista plástica Marianne Peretti (1927-2022), em 1977.

No Senado, os vândalos danificaram um painel de Athos Bulcão e uma tapeçaria de Burle Marx foi atingida por urina. 

“Esse evento mostrou o que tem atrás do projeto dos bolsonaristas. A máscara caiu. É uma raiva, um ódio da cultura, aquela que ajuda a construir o indivíduo, que ajuda cada um a escolher um caminho de independência”, acrescentou Vidal.

Fotografia mostra os estragos no Palácio do Planalto, em Brasília.
Fotografia mostra os estragos no Palácio do Planalto, em Brasília. AP - Eraldo Peres

Patrimônio imaterial

O historiador explica que, além das obras de arte em si, existe o patrimônio imaterial, do qual a democracia também faz parte. “Não à toa, destruíram [a réplica] do primeiro original da Constituição de 1988”, diz. “Quando isso aconteceu na história? Quando a Espanha estava sob o regime de Franco, a Alemanha sob o regime de Hitler, a Itália de Mussolini, regimes para os quais a cultura era alvo de ataque. Morte à inteligência”, observa.

O encontro em La Rochelle, na costa sudoeste da França, também terá a presença do arquiteto brasileiro e cineasta Humberto Kzure Cerqueira e da geógrafa Maria Isabel de Jesus Chrysostomo.

“A minha parte vai estar vinculada principalmente a uma discussão que me é muito cara, já há algum tempo, que é demonstrar como o rapto cultural é realizado pelo governo Bolsonaro justamente pelo medo e ameaça das elites ao avanço dos direitos e da visibilidade da cultura popular e da periferia”, explica a geógrafa. “Então, a minha ideia é mostrar que a cultura de matriz africana, que durante muito tempo vem lutando para a conquista de seus direitos através de várias manifestações que vão desde os batuques, no período ainda da escravidão, até o hip hop, passando pelo samba, pelo funk; essa cultura que não pode apenas ficar restrita a esse aspecto da musicalidade, ela é representativa de uma técnica, ela é representativa de uma forma de luta, de resistência, de resiliência, que têm um papel importante para a formação da sociedade, do povo brasileiro”, acrescenta Maria Isabel.

Ela diz estar preparada para novos ataques. “Eles vão utilizar negros e indígenas contrários a esse avanço, a essa mudança, para demonstrar que isso é apenas um discurso da esquerda, um discurso controverso e que não respeita nem os valores que eles consideram adequados”, conclui.

Uma escultura em madeira do artista Frans Krajcberg, que nasceu na Polônia e depois naturalizou-se brasileiro, também foi danificada.
Uma escultura em madeira do artista Frans Krajcberg, que nasceu na Polônia e depois naturalizou-se brasileiro, também foi danificada. AP - Eraldo Peres

Restaurar ou manter os vestígios dos ataques

Para Camille Brêtas, arquiteta franco-brasileira, outra preocupação agora é com relação às obras de conservação e restauração dos edifícios. Brasília faz parte do patrimônio histórico mundial pela Unesco e seus prédios são assinados pelo grande mestre da arquitetura modernista, Oscar Niemeyer.

“O que aconteceu domingo é muito grave e faz parte da história de um monumento. Um monumento é arquitetura, é história, é materialidade, é função, mas também representação, um símbolo. Então, a deontologia da restauração, hoje em dia, recomenda que os traços da história não sejam apagados”, desde que não causem problema ao funcionamento do edifício. “Como os arquitetos brasileiros vão se posicionar com relação aos eventos golpistas que aconteceram? Será que eles vão apagar esses vestígios e fingir que nada aconteceu, correndo o risco de amanhã sermos surpreendidos com uma nova tentativa? Ou, ao contrário, vão conservar esses vestígios como um aviso, lembrando aos políticos e a população que a extrema direita existe ainda, que ela pode e quer voltar?”, pergunta.

A RFI entrou em contato com o Palácio de Versailles que não quis comentar o assunto.

Funcionários trabalham na limpeza dos edifícios depredados em Brasília
Funcionários trabalham na limpeza dos edifícios depredados em Brasília REUTERS - ADRIANO MACHADO

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