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Reportagem

Guerra abre novos mercados para soja e frango brasileiros, mas exigências europeias bloqueiam expansão

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A guerra na Ucrânia perturbou ainda mais o mercado de commodities. Além do petróleo, os preços de produtos como cereais e oleaginosas sofreram aumento recorde. As exportações brasileiras de soja e o frango poderiam se beneficiar do contexto e conquistar mais mercados na Europa – mas, para isso, devem corresponder às rígidas normas do bloco. 

Foto de arquivo: a BR-163 entre o Bosque Nacional de Tapajós, a esquerda e um campo de soja em Belterra, estado do Pará, Brasil, em 25 de novembre de 2019.
Foto de arquivo: a BR-163 entre o Bosque Nacional de Tapajós, a esquerda e um campo de soja em Belterra, estado do Pará, Brasil, em 25 de novembre de 2019. AP - Leo Correa
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A Rússia e a Ucrânia são dois grandes produtores mundiais de commodities. A zona do mar Negro foi responsável, no ano passado, por 30% das exportações mundiais de trigo, praticamente 14% das de milho e dois terços das de semente de girassol. 

Além disso, a economia mundial já vinha de um ciclo de alta dos preços das commodities devido à pandemia de Covid-19. De acordo com uma nota técnica divulgada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) no final de abril, o valor dos produtos agrícolas no Brasil atingiu níveis recordes nos primeiros meses de 2022. 

Os reflexos da queda drástica das exportações da Ucrânia e da Rússia pioraram o cenário: o trigo deve subir 42,7% e seguir em alta, assim como a cevada (33,3%), a soja (20%) e o frango (41,8%). 

O impacto desses aumentos de preço no bolso dos brasileiros já é conhecido, mas o que dizer das consequências nas exportações? Novos mercados poderiam se abrir para o trigo ou para o milho brasileiro? Apesar da economia brasileira ser baseada em commodities, para os especialistas entrevistados pela RFI, a questão é mais complexa. 

Aumento da produção de trigo e do preço do pão

A produção brasileira de trigo deve crescer em 2022. Informações da Embrapa indicam que a área nacional dedicada ao trigo pode aumentar 13% neste ano, passando de 2,7 milhões para 3,1 milhões de hectares. Por isso, a produção pode atingir 8,5 milhões de toneladas, o que seria um recorde.

Mas, ainda assim, o Brasil consome mais trigo do que produz. O aumento da produção reflete, na verdade, uma tendência que começou no ano passado, de acordo com Ana Cecília Kreter, pesquisadora associada do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).

"Quem era produtor de trigo, que já vinha produzido mais, que foi o que aconteceu ano passado, quando tivemos um recorde de produção, decidiu exportar porque o preço era melhor do que no mercado doméstico", analisa. Isso explicaria o aumento do preço de produtos que usam trigo como pães e massas, explica.

A pesquisadora associada ao Ipea, Ana Cecília Kreter.
A pesquisadora associada ao Ipea, Ana Cecília Kreter. © Arquivo pessoal

Bola da vez

Mas outros produtos poderiam aproveitar à alta da demanda por commodities gerado pela guerra para conquistar outros mercados, como explica Maria Cecília Kreter. 

"A Ucrânia é uma grande exportadora de frango e, com a guerra, parou de exportar. O que está se especulando agora é que o Brasil pode ser a bola da vez, como aconteceu com a carne de porco a partir de 2019", explica, fazendo referência ao aumento de exportações de carne suína do Brasil para a China, atingida pela peste suína africana. "É o que o setor está esperando, porque pra ele, é claro que é superinteressante." 

O economista Philippe Chotteau, do Instituto francês de Pecuária (Idele), concorda. "Eles têm mercados a conquistar na Europa", diz. "Isso não vai agradar aos produtores de frango europeus, claro, mas também temos grandes exportadores na Europa, como a Polônia, a Holanda. Já a França é principalmente importadora", diz o especialista. 

Chotteau ressalta que, atualmente, além da guerra na Ucrânia, a França enfrenta um surto de influenza aviária, um tipo de gripe que afeta regiões inteiras e que causa problemas para criadores. 

Para ele, a escassez do produto que gera mais preocupação na Europa é provavelmente a do óleo de girassol, mas ele também cita outros grãos como a soja e o farelo da soja. "O nosso tipo de criação de animais nos leva a importar muito farelo, com cada vez mais exigências de produtos qualitativos da carne e do leite, que integram a obrigação de farelo sem organismos geneticamente modificados (OGM)", diz. 

"Há dez anos, tinha um estado do Brasil, o Paraná, que havia escolhido a estratégia de continuar a fornecer o farelo de soja não modificada geneticamente. Mas ele existe cada vez menos porque o custo para diferenciar o farelo modificado do não modificado, no porto de Paranaguá, por exemplo, é muito alto. Cada vez menos agricultores plantam soja não modificada porque, no fim, faltam sementes e é mais caro", explica.

"A Europa e a França em particular, que se abastecia no Brasil, há dez anos, procurou outras fontes de farelo não-transgênico, na Índia, na Nigéria, e também na Ucrânia. Por isso, atualmente está em falta", diz lembrando que o preço do farelo de soja convencional está em alta. De acordo com as últimas cotações, a tonelada é negociada por volta de €650 ou €600. "Mas o farelo não modificado custa quase €340 mais caro e uma grande parte vinha da Ucrânia", observa.

Além do custo alto de uma produção deste padrão, o especialista salienta outra exigência europeia: a de que o produto que respeite o meio ambiente. "Se houvesse pessoas no Brasil que quisessem investir em não modificados geneticamente com a garantia de que o produto também não vem de desmatamento, acho que aí poderia haver um novo mercado para os brasileiros", analisa. 

O economista Philippe Chotteau du Instituto francês de pecuária (Idele).
O economista Philippe Chotteau du Instituto francês de pecuária (Idele). © Arquivo pessoal

Exportações restritas 

A economista do IPEA lembra que, quando fala de exportações, se refere a grandes produtores. "Eu não falo do produtor, eu falo do exportador, porque muitas vezes você tem o intermediário e ele, sim, dita o preço", explica. "Por isso que é difícil dizer que determinado setor lucrou. Você tem grupos dentro do setor que lucraram e estão lucrando muito. Mas tem outros que nem tanto", salienta. 

Para Philippe Chotteau, existe uma parte dos agricultores que acabará sendo  prejudicada. "Tem o setor do agronegócio e todo o setor de agricultura familiar que fica fora de tudo isso e sofre com a alta dos insumos. Eles não aproveitam realmente", afirma. 

"Muitos produtores brasileiros apenas dependem do mercado consumidor interno, como os do leite, por exemplo, e não exportam. Se os brasileiros não têm mais poder de compra, será que eles vão conseguir produzir?", questiona. 

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