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Rendez-vous cultural

Bruxelas inaugura retrospectiva do premiado quadrinista brasileiro Marcello Quintanilha

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Apesar de estar radicado em Barcelona há mais de 20 anos, é no Brasil que o premiado quadrinista Marcello Quintanilha encontra inspiração para criar personagens que retratam as injustiças sociais no país. Quintanilha já conquistou o prêmio Fauve d’Or pelo álbum “Escuta, formosa Márcia” e o Polar de melhor história policial com “Tungstênio”, ambos pelo Festival Internacional de Histórias em Quadrinhos de Angoulême. Agora, sua obra desembarca no icônico Museu de História em Quadrinhos de Bruxelas.

Museu de Histórias em Quadrinhos em Bruxelas expõe trabalhos de autor brasileiro premiado.
Museu de Histórias em Quadrinhos em Bruxelas expõe trabalhos de autor brasileiro premiado. © 2021 Marcello Quintanilha. foto à direita/ Letícia Fonseca-Sourander/RFI
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Letícia Fonseca-Sourander, correspondente da RFI em Bruxelas

“Quintalhinismo: crônicas visuais do Brasil” apresenta um panorama da produção do artista nos últimos anos. Na exposição, que ocupa toda uma galeria do primeiro andar do famoso museu dedicado aos quadrinhos projetado por Victor Horta, o público vai poder conferir os personagens, a paleta de cores, os traços e a criatividade de Marcello Quintanilha, que conversou com a RFI sobre o fato de estar expondo em Bruxelas, considerada a capital mundial das HQs, e analisou a visibilidade dos quadrinhos brasileiros nos mercados internacionais.

“É incrível ter a possibilidade de expor no Centre Belge de la Bande Dessinée aqui em Bruxelas, porque Bruxelas é quase uma segunda pátria para as pessoas que se dedicam aos quadrinhos. Todo esse ambiente no que se refere ao quadrinho belga e ao quadrinho franco belga em maior medida é um ambiente no qual eu estou muito familiarizado”, afirmou.

“Eu acho incrível também que um trabalho como o meu que está ancorado em tudo o que tenha a ver com a cultura brasileira e as referências brasileiras em todos os aspectos venha tendo uma receptividade tão grande aqui na Europa; principalmente se a gente levar em conta que muitas pessoas não estão familiarizadas com a cultura brasileira em um primeiro momento. No entanto, isto não é aparentemente nenhum impeditivo para que as pessoas se interessem para o meu trabalho, se interessem por um trabalho apresentado dentro da perspectiva brasileira, o que é fantástico pra mim, o que é realmente fantástico”, comemorou.

Segundo a curadora da exposição, Mélanie Andrieu, “A cada álbum, Quintanilha muda de técnica, alterna registros, varia enquadramentos e revisita os códigos das histórias em quadrinhos. Ele coloca em cena personagens marcantes para melhor contar o país que conheceu e que carrega dentro de si. Traduzidas em vários idiomas suas histórias transmitem a alma de uma sociedade multicultural, mas também denunciam as disparidades sociais do país e suas desigualdades. Uma humanidade pungente que faz de Marcello Quintanilha um autor contemporâneo essencial”.

Visitantes de várias gerações conferem a obra de Quintanilha. 
foto à esquerda.
Visitantes de várias gerações conferem a obra de Quintanilha. foto à esquerda. © Daniel Fouss/CBBD, foto à direita/ Letícia Fonseca-Sourander/RFI

Trajetória & influências

Autodidata, Marcello Quintanilha lembra que aprendeu as primeiras noções de anatomia humana observando fotos de jogos de futebol nos anos 1970. Filho de um ex-jogador profissional de futebol que foi obrigado a interromper sua carreira prematuramente, o artista se inspirou nas memórias do pai para criar seu álbum de estreia “Fealdade de Fabiano Gorilla” (1999) e “Luzes de Niterói” (2019), uma história sobre a força da amizade no Brasil dos anos 1950, que também é uma homenagem ao pai.

Quintanilha nasceu e cresceu em um bairro simples de Niterói, no Rio de Janeiro, repleto de indústrias e fábricas que foram obrigadas a fechar as portas e vilas operárias descaracterizadas pela perda do vigor econômico da região. “Eu cresci em um bairro cuja importância política, econômica e cultural ia dando adeus cotidianamente. Isso me marcou de uma maneira permanente”, afirma o artista.

“Muitas das minhas histórias tentam recriar essa atmosfera que conheci em primeira pessoa, ou que eu não cheguei a conhecer, mas estavam presentes nas pessoas com quem eu me relacionava, com a minha família, com meus amigos. É uma forma de tentar preservar aquilo que conheci. Todos os personagens que trabalho em minhas histórias são desdobramentos daquilo que sou como pessoa”, enfatiza.

Conhecido por retratar personagens dos subúrbios fluminenses e da periferia brasileira, Quintanilha faz questão de usar uma linguagem bastante coloquial com gírias e sotaques regionais em seus quadrinhos. Entre as inúmeras referências que o inspiram, ele destaca a obra de Machado de Assis, o cinema neorrealista italiano de Vittorio de Sica e os filmes noir de Orson Welles, além do teatro do absurdo de Samuel Beckett.

Marcello Quintanilha, vencedor do troféu Fauve d’Or em Angoulême, é presença assídua em festivais e lançamentos de HQs.
Marcello Quintanilha, vencedor do troféu Fauve d’Or em Angoulême, é presença assídua em festivais e lançamentos de HQs. AFP - YOHAN BONNET

HQ brasileira em alta

Com uma produção premiada no Brasil e na Europa, Quintanilha acredita que a crescente presença de quadrinhos brasileiros no exterior se deve à própria consolidação da produção nacional. “Eu acho que a gente nunca pode perder a perspectiva de que a penetração do quadrinho brasileiro nos mercados internacionais da forma como ele tem se processado hoje, quer dizer, através de uma produção autoral, propositiva, ela é um reflexo do fortalecimento dessa produção no próprio Brasil, o que é incrível”, conclui.

“Durante muitos anos tivemos dificuldade em estruturar a nossa cena, o nosso mercado, talvez já podemos falar desta forma, de uma maneira mais concreta; mas nos últimos anos acho que temos tido resultados muito interessantes do esforço feito entre todas as pessoas que estão envolvidas com a produção de quadrinhos no Brasil que derivou em uma cena muito mais concreta, palpável e diversificada que inevitavelmente acaba atingindo os mercados internacionais. Eu tenho certeza que qualquer penetração que o quadrinho brasileiro venha tendo fora do Brasil é um reflexo do fortalecimento da cena brasileira no próprio território brasileiro”, reflete o artista.

Processo de criação

Não existe uma rotina padrão no processo de criação do quadrinista brasileiro mais reverenciado da atualidade. ”Muitas vezes posso começar a história a partir de um desenho, e a partir desse desenho uma narrativa começa a desenrolar. Um desenho que não precisa ser necessariamente de um personagem, mas de uma cena ou de um objeto, e a partir daí, como uma música que vai ganhando mais e mais instrumentos a história vai se compondo”, explica.

Talvez o traço minucioso dos desenhos tenha sido uma paixão despertada ainda na infância. Quando criança, assim que aprendeu a ler, gostava de ver tiras de quadrinhos nos jornais como Brucutu, Dick Tracy, Hagar e Recruta Zero; em seguida, veio a fase dos super-heróis americanos, e mais do que os personagens o que o deixava realmente fascinado era observar a genialidade de ilustradores como John Buscema, Paul Gulacy e Neal Adams. “Depois, chegou o momento em que achava que não devia estar mais deste lado da página – como leitor – que eu precisava passar para o outro lado”, recorda.

Foi então ainda adolescente que o artista niteroiense se tornou quadrinista profissional desenhando gibis de terror e artes marciais para a editora Bloch. Doze anos mais tarde conheceu o desenhista francês François Boucq no Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte. O talento de Quintanilha chamou atenção de Boucq, que foi o responsável por apresentar o trabalho do autor brasileiro a uma editora na Europa. Foi o trampolim para o início da carreira internacional de Marcello Quintanilha.

Hélcio Quintanilha, pai de Marcello, é um dos personagens que inspirou Luzes de Niterói.
Hélcio Quintanilha, pai de Marcello, é um dos personagens que inspirou Luzes de Niterói. © Marcello Quintanilha

Reconhecimento internacional

A série “Sete Balas para Oxford”, da editora belga Le Lombard, foi a primeira grande empreitada de Quintanilha em terras europeias. O projeto, que durou mais de uma década, impulsionou a mudança do artista para Barcelona, na Espanha, em 2002. Os sete volumes da publicação, que ainda não foram editados no Brasil, contam a história de um detetive particular que promete à esposa que irá se aposentar assim que as sete balas do cartucho da pistola dele acabarem. Apesar da promessa, ele faz todo o possível para não desperdiçar nenhuma bala, pois, na verdade, ele não quer parar de trabalhar. A imagem do detetive Oxford foi inspirada no avô materno de Quintanilha. A série tem roteiro do argentino Jorge Zentner e do espanhol Montecarlo.

Já na Europa começou a colaborar com diversos veículos como os jornais espanhóis El País e La Vanguardia, o francês Le Monde, a revista Vogue; ao mesmo tempo, continuou produzindo álbuns para o público brasileiro.

Em 2005, recebeu um convite da editora carioca Casa 21 para fazer um livro sobre Salvador, que era parte da série Cidades Ilustradas. Durante duas semanas Quintanilha visitou todos os cantos da cidade, fez várias entrevistas, documentou tudo o que viu. A experiência serviu de inspiração para outras histórias em quadrinhos, entre elas o thriller policial “Tungstênio”, que foi adaptado para o cinema nacional e recebeu vários prêmios, inclusive o Angoulême.

Marcello Quintanilha é também autor de “Sábado de Meus Amores”, “Almas Públicas” e “O Ateneu”. Na última década ainda lançou os quadrinhos “Talco de Vidro”, “Hinário Nacional” - vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Histórias em Quadrinhos em 2017, “Luzes de Niterói”, “Escuta, formosa Márcia” – que recebeu o troféu Fauve d’Or de melhor álbum em Angoulême no ano passado, e seu primeiro romance, “Deserama”.

A exposição “Quintanilhismo: crônicas visuais do Brasil” fica em cartaz no Centre Belge de la Bande Dessinée, em Bruxelas, até o 27 de agosto.

Cartaz da exposição “Quintanilhismo: crônicas visuais do Brasil” no CBBD, em Bruxelas.
Cartaz da exposição “Quintanilhismo: crônicas visuais do Brasil” no CBBD, em Bruxelas. © Çà et Là 2022

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